O dedinho da deusa

Enquanto vadiava pelas vias de Ponto Belo no rastro volátil da deusa dali, observei que a tarde já afrouxara suas rédeas de luz, permitindo que a noite começasse a sombrear os distantes beirais do Torreão.

As ruas e largos da exígua cidade, num esforço de claridade, acendiam suas luminárias, algumas tímidas, outras exaltadas.

E amanhã, que caminho você vai seguir?

Era o que eu, na caça de interlocutores, me perguntava, enquanto via a noite, agora voraz, se apropriar da cidade nanica.

No centro de uma praça permeada de equipamentos recreativos e ruelas lúdicas, um quiosque despertou meu interesse.

Em torno dele quatro caras aproveitavam aquele princípio de noite de outono tropical pra uma relaxada conversa dominical.

Um dos caras era o dono do quiosque que tratou logo de servir a cerveja que cheguei pedindo.

Consciente da minha condição de forasteiro ficaria por ali, bebendo calado, até que uma oportunidade fosse oferecida pra que eu desfiasse a ladainha de dúvidas, digamos, logísticas que trazia – martelando – na minha cabeça.

Cadê a bicicleta?

Eu não tinha ainda nem completado o primeiro gole da cerveja que sorvia com silente prazer, quando essa pergunta partiu certeira na minha direção.

Era o dono do quiosque que, olhando pra mim, lançara a indagação e já explicava que tinha me visto pela manhã pedalando pela cidade.

(- …que julgava abandonada, arrematei em silêncio).

A partir daí, aquele trio (um dos caras debandou logo depois que eu cheguei) me serviu de todas as informações de que precisava.

O desfecho da conversa, lamento informar pra você, não trouxe a orientação que eu queria: eles foram unânimes em desaconselhar qualquer proximidade do meu percurso com o desenho cartográfico do Torreão.

Fora isso, o encontro foi muito proveitoso e agradável.

Olha só quem eram os meus interlocutores informativos:

o primeiro era o Adalberto – o único nome que me ficou daquela tríade –, ecoporanguense como eu e funcionário dos Correios.

Ele, além do natural interesse em ajudar um conterrâneo desgarrado, demonstrou um detalhado e apaixonado conhecimento da região.

O segundo era um cara mais velho: um ponto-belense que saiu dali, rodou pelo mundo e voltou pra esta terra, que ele conhece – pude ver – com o coração.

E o terceiro era… o dono do quiosque.

E não é que o cara tem um irmão que há coisa de uns cinco anos – contados até então – tinha pegado uma bicicleta e cascado fora

Dele, do tal irmão, só chegavam pra família, em Ponto Belo, notícias vadias, desgarradas, casuais.

O cara tinha escafedido-se.

Ao me ver naquela manhã pedalando pela cidade deserta, com bagagem de viajante sobre a bicicleta, ele disse que se lembrou com saudades do irmão fugidio.

Quando, depois, falei meu nome pro grupo, percebi de imediato a sua cara de alegre surpresa.

Sabe o nome do irmão nômade do dono do quiosque?

Gilson!

Pronto: estava eu, no fim de um domingo outonal, tomando desapressada cerveja com três velhos amigos – que acabara de conhecer – na praça mais extensa daquela cidade ínfima.

Não sei se devo, como sempre faço, atribuir integralmente ao acaso aquele encontro que, além de divertido, foi decisivo para o desenvolvimento do meu inexato roteiro de viagem.

Pois confesso que vi ali, naquele amistoso desfecho, um dedo – o mindinho, que seja –, da deusa parda, generosa e fugaz que transcendera a luminosidade discreta (e vazia) daquele dia com uma inebriante epifania.

(Continua no próximo domingo)

Veja textos anteriores:

Crônica publicada originalmente no site Estação Capixaba. Fotos: Gilson Soares.

Gilson Soares é poeta.
A Editora Cândida acaba de lançar mais um livro deste escritor: Cem palavras. Uma seleção dos textos publicados em sua coluna semanal nas páginas virtuais desta Editora. O livro pode ser adquirido na loja virtual: https://loja.editoracandida.com.br/cem-palavras