Ecoporanga
Quando cheguei a Ecoporanga a segunda-feira já definhava.
Passando por aquelas ruas que guardam rastros empoeirados de pedais pueris, observei espantado que o dia, num derradeiro esforço de luz, murmurava seus estertores:
restos resistentes de claridade se agarravam, com finos dedos dourados, às bordas daquele enorme cone de granito escuro – a Pedra da Igrejinha – que distingue o icônico pôr do sol de Ecoporanga.
Fiquei achando, como sempre, que presenciar, de cara, esse ocaso, foi mais um presente dado pelo acaso.
Olha só: saí de Cotaxé logo depois do almoço e vim dando muito pouca atenção à pressa que costuma acossar o ciclista na estrada.
Passei passeando por Imburana, vila que tem guardada nas suas poucas ruas e no seu casario comum uma expressão de simpatia que deixei escondida por ali, sem ninguém saber, desde os dominicais passeios da minha infância.
Para a pequena extensão de estrada que liga Imburana a Ecoporanga, eu dispensei todo o tempo que minha memória – sentimental – pedia.
Ainda que diante do intenso tráfego de máquinas, caminhões e tratores que removiam, mastigavam e cuspiam, num vai e vem estrondoso, grandes porções de terra, pedra, areia e vegetação ao longo daquela via ancestral:
essa era mais uma das estradas que se queria, a qualquer custo, pavimentar pra angariar votos, naquele ano eleitoral de 2014.
(Eu entendo esses procedimentos muito comuns no nosso universo político de baixa densidade ideológica.)
Assim fui pedalando desapressado e recordando que quando por ali passava, há coisa de meia centena de anos, aquela estrada era um estreito risco de terra nua cortando a floresta imensa.
Transitando, então, na contramão das tais monstruosas máquinas – roedoras, mastigadoras, trituradoras – dei de me lembrar de quando vi toda a mata que estava ali, indo embora:
em grandes carretas atadas a caminhões ferozes, troncos decapitados passavam, em decúbito, pelas ruas de Ecoporanga a caminho da mutilação fatal.
Eu, criança, não conseguia entender – não conseguia ver com os meus olhinhos infantis – que agarrados àqueles troncos trucidados, iam também ali rios e cachoeiras; onças, veados, quatis; beija-flores e macucos; traíras, piaus, lambaris…
Transpondo aquela rota anciã esfrangalhada, tive até vontade de comentar com aqueles trabalhadores que ali labutavam:
Em menos de cinco décadas, cara, matou-se essa mata que eu, infante, acreditava imortal…
Mas não comentei.
Até porque eles não teriam tempo pra me ouvir e, pior, não acreditariam no que iria lhes contar.
Continuei, pois, pedalando calado – entre crateras e perambeiras – pensando, emocionado, em chegar logo à minha cidade, que há mais de quinze anos eu não via.
O que eu não esperava é que esse reencontro fosse acontecer exatamente naquela hora em que, como cantava meu pai, a tarde tristonha e serena caía em macio e suave langor sobre Ecoporanga.
Crônica publicada originalmente no site Estação Capixaba. Fotos: Gilson Soares.
Gilson Soares é poeta.
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