Torre a ré

Costumo nominar de Torreão noroeste a torre irregular que a cartografia adota pra desenhar essa região do nosso estado por onde transito agora.

Esse território, depois de solavancos e trambolhões, acabou mantido no mapa do Espírito Santo, ainda que um tanto estrepado.

Desde que comecei a elaborar – com o descuido habitual – este Giro, considerei o propósito de pedalar seguindo, ipsis litteris, a linha demarcatória que ziguezagueia pelos sopés da Serra dos Aimorés, assinalando ali os limites dos territórios mineiro e capixaba.

Acreditava que poderia ir juntando umas às outras as estradinhas que, supunha, trafegam descalças e silenciosas por essa Serra, até chegar a Água Doce do Norte.

De Água Doce eu desceria pelas encostas da cordilheira dos Aimorés, passando pelo município mineiro de Mantena e retornando a território capixaba em Barra de São Francisco.

Os mapas que consultei antes do pedal não informaram nada que corroborasse essa minha expectativa.

Mas, teimoso, optei por acreditar que em chegando aqui encontraria um caminho pra desmentir os cartógrafos que fizeram o desenho rodoviário desse pedaço – ancho e desolado – do nosso estado.

Pra isso me propus, sem qualquer constrangimento, fazer naquele domingo (8 de junho de 2014) o percurso diário mais curto de toda a viagem, meros 22km, de Montanha a Ponto Belo, onde chegaria logo na primeira hora da manhã.

Depois passaria o resto do dia na busca de informações que, acreditava, permitiriam que eu alcançasse meu objetivo extremista.

Assim, o dia ainda nem bem amanhecia e eu já estava descendo, em silencioso voo, do platô que comporta uma parte da cidade de Montanha.

Indícios de chuva tilintavam sobre o capacete enquanto eu pedalava veloz no encalço do desjejum, que deixei pra fazer em Mucurici.

Já escalando a encosta onde se assenta essa cidade, encontrei numa borda da Praça de São Sebastião uma padaria – ainda solitária naquela madrugada dominical – que se dispôs, com discreta simpatia, a me servir o café da manhã.

Enquanto procedia ao desjejum permaneci, por curiosidade, à porta do tal estabelecimento conjecturando acerca da conformação daquele núcleo populacional que floresceu numa quebrada do vale do rio Itaúnas.

Fui induzido a supor – entre um café com leite e um pão com manteiga (na chapa) – que os poderes político e eclesiástico teriam se digladiado em algum momento da história de Mucurici.

Senão como explicar que a sede do poder executivo – a prefeitura de Mucurici – e a sede do poder eclesiástico – a Matriz de Nossa Senhora de Fátima – ambas fechadas e silenciosas àquela hora, se posicionassem tão decididamente antagônicas: enquanto a prefeitura, com sua humildade arquitetônica está de frente pra praça, a igreja, a seu lado, apresenta-se de costas para aquele largo sebastianista: da porta da padaria, eu via só o cocuruto da torre da igreja, erguida lá na frente, mais acima no aclive.

Fazer o quê? Interroguei pensativo.

Esses entreveros costumam mesmo acontecer na história política de alguns agrupamentos sociais, concluí fazendo pose de antropólogo urbano, enquanto finalizava meu desjejum pra prosseguir, calado, a escalada.

Só depois fiquei sabendo, meio por acaso, que a Igreja de Nossa Senhora de Fátima tem a sua torre erguida na parte de trás da edificação.

Quer dizer, fui ludibriado: a sede da paróquia está, em verdade, de frente pra praça. Quem sabe, até de braços dados com a modesta prefeitura.

A torre é que foi erguida na retaguarda da nave.

Não sei se tal torre, postada a ré, seria considerada uma heresia pelos estudiosos de arquitetura religiosa, coisa que não sou.

Só sei que o construtor de igrejas que projetou aquele subversivo prédio, que reverencia a santa portuguesa, conseguiu me enganar.

E presumo que este equívoco acometerá qualquer transeunte mal informado que passe por ali numa hora como aquela.

Mas, ao menos, aprendi que não devo usar a dedução – e sim a pesquisa, oral ou documental – quando me arvoro a inserir um quê de informação histórica neste reles relato de giro ciclístico.

Giro este que vai cruzando, agora, o ponto mais alto do Torreão depauperado que fica ali, no topo do mapa do nosso estado.

Crônica publicada originalmente no site Estação Capixaba. Fotos: Gilson Soares.

Gilson Soares é poeta.
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