Rumo às dunas de Itaúnas
Quando deixei São Mateus, na manhã da quarta-feira, 4 de junho, avistei pela primeira vez, nesta viagem, a turbulenta BR-101.
Não só avistei, como por ela – por sua indefectível turbulência – transitei em trecho curto: da fronteira urbana de São Mateus, até a entrada da estrada que se aparta da BR e embica no sentido de Conceição da Barra.
Não que eu fosse pra Conceição da Barra, a praia mais próxima da minha remota infância ecoporanguense.
É pra Itaúnas que eu estava indo e foi lá que cheguei naquela quarta-feira de início de junho, encontrando a vila entregue à sua quietude original, distante de férias, feriados, verões e festivais de forró.
Sim, o lugarejo silencioso a que eu chegava pedalando ao quase meio-dia daquele dia simples, era patrimônio pacífico dos seus moradores.
Além dos itaunenses, os forasteiros que perambulavam por ali, naquele dia, éramos somente eu – de mãos dadas com ela, magrela – e um ou outro empregado da empreiteira que andava cavucando os arredores da vila.
Cavucando por ali, é?!
Pois não é que a estradinha de Itaúnas, aquela mesma por onde transitaram os sonhos de tantas gerações em busca de viagens fugazes por trilhas, dunas, rios, praias e noites de forrós e de namoros, estava sendo, então, pavimentada?
Se isso era feito para o bem ou para o mal da paz itaúnica, só o tempo dirá.
O que fiz, então, foi logo me hospedar, pra depois, folgado, conversar, beber, passear, enfim, fazer a minha viagem pessoal pelo cenário e pelo clima que Itaúnas ainda oferece quando despida de paramentos artificiosos.
Era exatamente isso o que eu queria quando exigi do meu inexato planejamento de viagem uma pausa sob aquele céu de sonhos.
E foi conversando e bebendo pelos meandros da deserta Itaúnas que, sem mais nem por que, fui informado de uma vila chamada Três Corações que por sua curiosa característica político-geográfica muito me interessou.
(Mas deixo pra relatar minha passagem por essa importante vila tricordiana um pouco mais à frente).
De Itaúnas o que posso dizer é que, tanto a pé quanto de bicicleta, desbravei a vila nua, desde o baixio das suas minudências urbanas, até o cume das dunas douradas, com direito a despejar meu olhar desapressado sobre o rio escuro e silencioso; a caminhar pelas trilhas desenhadas com os pés nos interstícios da restinga alta; e com direito, ainda, a uma breve hospedagem solitária na casa desabrigada do velho Tamandaré que se ofereceu, tácita, para ser a minha sala de leitura vespertina.
Ali se encerrou – sob o olhar curioso de um jovem lagarto que cruzava, vez ou outra, o terreiro arenoso – a caminhada heroica da Coluna Prestes.
Dali em diante ao invés do pertinaz Prestes com sua valente e esfarrapada Coluna, eu teria a companhia do Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de la Mancha com o seu pacífico e sábio escudeiro.
O que é isso, croniqueiro?
Calma que eu explico: é que além daqueles cinquenta exemplares de Minério de que tinha lhe falado, eu transportava, ainda na garupa da magrela, mais dois livros pra minha leitura itinerante.
O livro que acabara de ler ali naquela tarde deserta, sob o olhar fugaz do jovem e passadiço lagarto, foi Uma Epopéia Brasileira – a Coluna Prestes, de Anita Leocádia Prestes, a historiadora, filha do Cavaleiro da Esperança. Um livro relativamente pequeno (eu já tinha lido antes As Noites das Grandes Fogueiras – Uma história da Coluna Prestes, de Domingos Meireles, bem mais volumoso) com um relato breve da Coluna, que achei apropriado pra circunstância cigana que me aguardava.
O outro livro que levei, pra releitura, foi o volume I da obra-prima de Miguel de Cervantes, numa volumosa (e pesada!) edição da Editora Itatiaia, com tradução de Eugênio Amado e que oferece, de lambuja, uma miríade de ilustrações de – sabe quem? – Gustave Doré.
Assim, depois de deixar os remanescentes da esfarelada – mas invicta! – Coluna Prestes em território boliviano, abandonei a casa do Tamandaré, passeei mais um pouco pelos desertos extensos daquela tarde outonal, deixei um ou dois exemplares de Minério na biblioteca da EMEF Benônio Falcão de Gouvêa ali no centro de Itaúnas e fui dormir, juntamente com as galinhas itaunenses que, enquanto eu passava, iam aos cacarejos se empoleirando nos arborizados quintais daquela vila tardia.
Sim, a noite ainda se anunciava sobre Itaúnas, quando me recolhi ao confortável – ainda que rústico – dormitório da recatada pousadinha que me acolhera.
Mas antes que o sono confiscasse-me os sentidos, pulei sobre as ancas magricelas do Rocinante, para, de ponga, iniciar, mais uma vez, um passeio pelas geniais estradas cervantinas, agora a par e passo com a minha viagem – mais venturosa que aventureira – pelo Arco Norte do nosso estado.
(Continua no próximo domingo)
Crônica publicada originalmente no site Estação Capixaba. Fotos: Gilson Soares.
Gilson Soares é poeta.
A Editora Cândida lançará brevemente mais um livro deste escritor: Cem palavras. Uma seleção dos textos publicados em sua coluna semanal nas páginas virtuais desta Editora.