As cristas dos Aimorés

O que os primeiros cartógrafos a serviço da Coroa determinaram – com suas linhas de fácil leitura e com seus desenhos que apresentam topografias e hidrografias evidentes – é que os cocurutos dos montes alinhados ao longo desta serrania (por onde passamos agora, eu e ela, magrela) estabeleciam, a oeste, os limites territoriais da Província do Spirito Sancto.

Isto é: a linha demarcatória da nossa divisa com as Minas Geraes era desenhada, a partir da margem norte do Rio Doce, pegando, de crista em crista, a sucessão de montanhas que compõem essa extensa Serra dos Aimorés.

O desenho esfrangalhado com que o nosso Torreão Noroeste é retratado hoje resulta, presumo, de disputas que se resolveram ao sabor do tempo e da força política nacional dos contendores.

Além, também, do que foi se impondo em recorrentes escaramuças locais.

Nosso estado, que sempre teve pouca representação no conjunto que depois se constituiria federativo, foi estrepado amiúde.

Há de se supor, por exemplo, que quando a riqueza que era arrancada das minas começou a se esgotar, os mineiros vieram se bandeando pra este lado de cá da Serra e ocupando anchos nacos devolutos do nosso Vilão farto.

Tensionada por aquele deslocamento social e mercantil, a fronteira foi escorregando ladeira a baixo e se estendendo pra Leste.

Até ser barrada.

Naquelas disputas que estabeleceram esse limite geopolítico estadual, quem saiu perdendo, claro, foram os povos originários que estavam desde sempre aqui.

Como perdeu, também, aquele agricultor que chegou depois, plantou suas raízes e passou a colher deste solo o sustento de sua família.

Os nativos (Puris, Tapuias, Aimorés… generalizados como Botocudos, pelos invasores europeus) foram duramente atacados (ao longo de quatro séculos) e quase dizimados.

Já o homem do campo, esse depois foi expulso pra uma nova fronteira agrícola ou pras periferias das grandes cidades.

Os donos oficiais das terras – os de sempre – pomposamente reunidos longe daqui, assinaram papéis, cumprimentaram-se e aplaudiram-se mutuamente.

Os mapas com seus desenhos informativos foram revisados.

E ao fim do longo imbróglio, o que restou à cartografia pra delinear o Noroeste do Espírito Santo, foi esse Torreão escalafobético.

Nada mais será contestado.

Portanto ao derrapar por essas perambeiras, margeando o Ariranha, estamos – eu e ela, magrela – em território mineiro.

Depois de passear um pouco pela vila de Ariranha, pegamos a estrada pra Mantena.

Mesmo considerando que essa cidade guarda fragmentos importantes das minhas memórias infantis, não haveria motivo para que Mantena me recebesse com aparência tão festiva na tarde daquela quarta-feira frugal, 11 de junho de 2014.

Atribuí logo a colorida ambientação e a retumbante sonoridade não a mim, nem a ela, magrela, claro, mas, sim, à expectativa para a Copa das Copas no Brasil, que começaria no dia seguinte, 12 de junho.

Por isso elegi, imediatamente, Mantena como A Cidade mais Festiva da Copa no Roteiro desse meu Giro.

Depois de anunciar (só pra mim mesmo) o resultado que a comunidade dali conquistara no concurso que inventei, fui informado que a cidade tinha se engalanado daquele jeito, era, em verdade, pro seu aniversário de fundação, 13 de junho.

Os mantenenses, efusivos, vibravam com a divertida – e rara – oportunidade que estavam tendo de antecipar (por um dia!), em razão da Copa do Mundo, a festividade natalícia da cidade.

Pedi, então, licença pra retirar-lhe a medalha que acabara de outorgar. Depois circulei um pouco por ali tentando, em vão, identificar por baixo da indumentária festiva algum aspecto da cidade esquecida da infância. Ainda assisti (abrigados, eu e ela, magrela) à passagem de um rápido e estrondoso toró que chegara das brumas do inusitado.

E, finalmente, picamos a mula pra Barra de São Francisco, onde eu tinha combinado com a minha brava companheira de viagem que iríamos dormir naquele dia.

E foi ali, incontestavelmente em território capixaba, que dormimos sossegados eu e ela, magrela.

(Continua no próximo domingo)

Veja textos anteriores:

Crônica publicada originalmente no site Estação Capixaba. Foto: Gilson Soares.

Gilson Soares é poeta.
A Editora Cândida acaba de lançar mais um livro deste escritor: Cem palavras. Uma seleção dos textos publicados em sua coluna semanal nas páginas virtuais desta Editora. O livro pode ser adquirido na loja virtual: https://loja.editoracandida.com.br/cem-palavras