De menesguei

Estava satisfeito com a proximidade do desenlace da segunda e última amarra do Giro, ali em Montanha.

Portanto nada mais pretendia exigir daquela tarde interiorana de sábado com formato, conformado, de hiato.

Foi com essa indolente expectativa que acomodei Dom Quixote e Sancho Pança na cabeceira da cama do hotel que, com modéstia, me albergava e saí para mais um passeio, agora a pé, pela cidade distraída.

A magrela ficou descansando, solitária, no quintal da pacata hospedaria.

Estávamos a menos de cinquenta passos da praça principal da cidade: era só atravessar, meio de menesguei (se é que você me entende) a avenida em frente, pra topar de quina com uma das esquinas do largo primaz.

Foi o que fiz.

Ao meio desses, talvez, cinquenta passos, divisei à distância um sujeito sorridente trajando um chapéu de aba curta.

Gesticulando largamente com todos os seus braços, vinha lá o tal cara na minha direção.

Não tive dúvida: era Guilherme Moxuara, que, festivo e amistoso como é do seu feitio, vinha ao meu encontro, depois de deixar à sua retaguarda um grupo, às gargalhadas, em torno de algumas garrafas de cerveja.

Eu sabia que ele, com o seu indefectível chapéu curto, estaria por perto naquele dia: afinal, como produtor local da temporada capixaba do Sérgio Samba Sampaio foi Guilherme, certamente, o interlocutor da Secult/ES no desenho daquela abrangente circulação pelo estado.

Só não pensava que iria encontrá-lo já: bem no início daquela minha casual caminhada vespertina pela cidade impassível.

Aquele grupo a que ele agora me apresentava um a um era toda a tripulação do Sérgio Samba Sampaio, com exceção do Chico Salles.

Surpreendido por uma afonia, o cantor teve que ficar de molho no hotel a fim de afinar, a tempo, seu orgânico instrumento.

No mais todos os saudáveis integrantes da trupe, cumpridas as obrigações de passagem de som no palco do Municipal, estavam ali com indisfarçada alegria.

A condução parlamentar do grupo a que me fora permitido aderir, estava entregue a Henrique Cazes.

Sim, era esse grande músico brasileiro o responsável pela direção musical do Sérgio Samba Sampaio.

Mas não era por isso, por essa posição de comando musical no espetáculo, que ele tinha sido indicado, e eleito, presidente desse vespertino parlamento etílico montanhês ali instalado.

É que naquela divertida circunstância de total descontração e liberdade de agenda, não havia ninguém, essa é a verdade, que quisesse fazer oposição à direção parlamentar que ele assumira com incontestável hilaridade.

Convidado, ocupei um assento (e um copo) naquela roda de riso, em meio a um bando de feras musicais.

Logo me dei conta de que o que Cazes estava apresentando ali, de graça, na calçada daquela praça, era parte do repertório das Cento e tantas histórias engraçadas sobre música e músicos que compõem seu livro histórico, parte da minha biblioteca musical, Suíte Gargalhadas.

De lambuja, trazia ele à mesa, entre uma pilhéria e outra, alguma indecorosa paródia de clássicos da Música Popular Brasileira que ele interpreta com a precisão do instrumentista, produtor musical e pesquisador minucioso, que é.

Sem desconsiderar a providencial contribuição de Guilherme Moxuara, com seu chapéu e seu sorriso amistoso, a minha presença naquele evento improvável eu devo mesmo é ao, sempre generoso, acaso.

De mim só foi exigido que chegasse a Montanha no dia combinado; que me hospedasse naquele hotel ali (a coisa de cinqüenta passos da praça); que, ao invés de um cochilo vespertino resolvesse passear à toa pela cidade desatenta; que deixasse a magrela em boa sombra repousando (e partisse a pé); e que ao sair, atravessasse, claro, de menesguei aquela avenida que tangencia a praça matriz.

Foi só isso o que fiz.

(Continua no próximo domingo)

Veja textos anteriores:

Crônica publicada originalmente no site Estação Capixaba. Fotos: Gilson Soares.

Gilson Soares é poeta.
A Editora Cândida acaba de lançar mais um livro deste escritor: Cem palavras. Uma seleção dos textos publicados em sua coluna semanal nas páginas virtuais desta Editora. O livro pode ser adquirido na loja virtual: https://loja.editoracandida.com.br/cem-palavras