Talvez eu devesse dedicar a publicação deste velho (e esquecido) poema a um recente motim dos cupins que têm compartilhado (e triturado miudinho) certos compartimentos da minha casa.
Outro dia, quando abri os olhos, um porão do armário abarrotado de coisas antigas, estava esfarelado.
(na verdade, nem tudo era farinha, havia ainda alguns frangalhos)
Foi ali que encontrei velhos poemas deslembrados, afogados no olvido.
Pensei comigo: se eles passaram pelo crivo desses insaciáveis itapicuins, merecem ser publicados (até mesmo porque preciso preencher um possível vácuo na periodicidade prometida), mesmo que já tenham ultrapassado (em muito) seus prazos de validade: foram escritos na penúltima década do (distante) século XX.
Num tempo em que, como se pode perceber pelo ambiente do poema, eu era bancário.
Sob o (notório) risco de uma (indefensável) defasagem, eis um deles:
Pequena margarida
Como a metade da romã, assim as tuas faces
através do teu véu. (Cântico dos cânticos, 6, 7)
I
Há uma flor escondida em teus cabelos?
Há sob os teus recônditos pelos uma pequena margarida perdida?
Além da brandura da tua pele há um incêndio que não aflora?
Há, dentro de cada menina negra dos teus olhos, miríades de sonhos insonhados?
Contra cada cadeado que te encadeia e contém
atua uma força (a tua força) que quer ser luz e paixão?
Há, se engendrando no engenho do teu corpo inteiro uma iminente explosão?
Além do teu ser social vestido de convenções e razão
ronrona inquieto o teu ser animal?
Há, oculto sob a tua funcional presteza,
um universo de fantasia,
um mundo, adormecido, de magias?
II
Claro, sei que há no teu ser
(vejo em lampejos do teu olhar, na tua boca inquieta, no teu corpo fugidio)
tudo o que não me é dado saber.
Claro, sei-o.
Mas, mesmo contido (por algum receio)
não há como deter (devo dizer?)
o meu desejo de arriscar entradas (e bandeiras)
pelo teu mundo animal
(teus au-aus, teus miaus)
até descobrir aí (quem sabe?) neste momento impensável,
(impossível) enfim,
algum mistério nunca desvelado por mim.
Foto do poeta quando bancário
Foto: Sérgio Cardoso