A reedição do livro Canção da meia-idade dá ao leitor a oportunidade de conhecer um momento muito expressivo da carreira de um poeta perfeccionista. O livro esteve muito tempo esgotado e agora retorna trazendo consigo uma sucessão de diálogos entre diversas esferas, espalhados pelo tempo e pelo espaço. Gilson sabe lidar com dimensões muito variadas, conciliando-as admiravelmente.
Parte dos poemas do livro – agora integralmente reeditado – estava disponível a coletânea 55, publicada 2018, que reunia poemas dos três primeiros títulos publicados pelo poeta, os quais foram selecionados com a criteriosa participação de Reinaldo Santos Neves.
Em 2023, a editora Cândida começou a reeditar o conjunto que o autor denomina trilogia autobiográfica, começando pelo último, Minério, lançado no início do ano. Agora, em julho, chega o do meio, Canção da meia-idade, que é o que nos interessa aqui. Se no primeiro livro, estreia inesperada (uma história que merece ser contada oportunamente), vê-se um poeta ainda afobado pela juventude que nunca cabe em si, na meia-idade o canto é mais cadenciado e o olhar mais atento ao entorno. Contudo, a poesia mantém os elementos que caracterizam o artista Gilson Soares. Vejamos.
A simplicidade, o prazer em lidar com a palavra e um profundo amor pela poesia estão presentes no livro como elemento que o autor perseguirá incansavelmente daí em diante. Acrescente-se à lista a busca pela precisão. Percebe-se com clareza uma obsessão pelo vocábulo exato, pelo texto limpo. Embora seja adotada uma linguagem doce, ainda que irônica, ela aparece com uma concisão que ao leitor apressado pode dar impressão de secura, mas que fala fundo.
A tão perseguida exatidão aproxima o autor do número. Isso pôde ser visto no prefácio da antologia, não por acaso intitulada por meio de um numeral, como vimos. Outro exemplo do apego de Gilson ao mundo da matemática é a série de textos de cem palavras que ele vem produzindo semanalmente nos últimos dois anos. A editora já anunciou a publicação de um livro que contará com cem textos da série, escolha muito condizente com o prazer que o poeta sente em lidar com quantidades.
Esse trabalho meticuloso do autor confere leveza à linguagem, o que permite apresentar algumas imagens delicadas, como uma flor se abrindo e revelando um mundo que é sempre novo:
É possível que nessas quatro décadas
em que estou aqui,
preso aos emaranhados de mim mesmo,
eu não tivesse ainda visto uma flor se abrir
Veja-se nos versos acima o número novamente, expresso nas quatro décadas que marcam a idade do autor na época de escrita do livro. O tempo passando e o poeta sempre a descobrir os caminhos da poesia nas coisas pequenas do mundo. Essa ideia está presente também na última estrofe do poema que dá título ao livro:
Agora que começo a perceber
a extensão do mundo
e o comprimento dos meus braços,
quero me alimentar de história
e calma
sem abdicar dos sonhos
e nem me abster das paixões!
Essa observação do mundo e a concisão do texto aparecem de forma evidente no poema Aquário, que segue integralmente abaixo:
Os pequenos peixes aos feixes,
feito bailarinos numa coreografia incerta
alheios
à balbúrdia dos nossos dias
à confusão que se passa então
e à hecatombe que rompe
dos nossos olhos marejados de angústia
nadam
como se nada.
Além da evidente concisão, o poema acima mostra outras recorrências no texto de Gilson, tais como trocadilhos e rimas internas. Há ainda um tema a que o autor alude muito, que é a mulher. Nesse aspecto, vale a pena recorrer ao prefácio do livro, de autoria de Gilbert Chaudanne.
Gilson Soares: o removedor tranquilo
Uma poesia do ser que aqui está. Por isso não é metafísico, é algo tangível, cotidiano com, entretanto, uma presença ontológica: a do tempo incompreensível que passa.
A casa, a mulher, a flor. A flor sobretudo como abertura do imponderável que é criador de beleza. Nesse mesmo registro: a moça, a mulher na sua leveza como broto ou como flor desabrochando, se abrindo no seu próprio caminhar. Mas não há esse lirismo bobo das flores e das estrelas. Um lamartinismo ao 3º grau, causa das poesias babacas de estrelinhas, de amorinhos-coraçãozinhos. Gnan gnan gnan.
O poeta não é um sonhador. Cesário Verde e Fernando Pessoa mostraram que ele é o guardador dos parafusos. A poesia é uma casa de ferragem e não uma hierarquia celeste. Há tanta poesia numa sopeira quanto numa estrela. Como diz Gilson: o mundo da estrela é o mundo dela e o nosso é o nosso. Não há ponte entre os dois a não ser a estranheza, no melhor dos casos, ou o divórcio absoluto. Ninguém casa com as estrelas. (Fora em Hollywood, claro).
A estranheza de estar no mundo está ali, nesta poesia. Mas há um carinho latino para as coisas apesar da sua estranheza. Um carinho que não é sentimental. Só os bêbados e as histéricas acham que ele é sentimental. É uma poesia que pode lembrar Rilke, João Cabral de Melo Neto sem a secura e a “metalidade”, a presença cortante do metal, neste caso.
Gilson Soares não dispensa uma certa conivência terna com as coisas, com os seres: uma ternura apolínica que não cai no sentimentalismo glandular nem na secura fria do metal. Para Gilson, a Meia-idade é isto: o meio de tudo, o meio-dia, lugar de equilíbrio do sol e da consciência dura que não perdeu a ternura, na mão de Apolo.
O sentimentalismo é o crepúsculo: sangue de sol, encenação da morte sangrenta – suicídio do sol.
A poesia de Gilson Soares é um amor contido para as coisas e os seres. Nesse sentido, é clássica porque também simples e profunda ao mesmo tempo como um quadro de Georges de la Tour.
Nada de literatice-enche-linguiça – é a cerimônia da linguagem que está aqui desabrochando com uma tranquilidade que remove mais os obstáculos do que todas as revoltas.
Por fim, cabe revelar também a impressão de outro leitor atento, que dá suas impressões sobre a canção de Gilson. Escreve Ruy Perini após a leitura da segunda edição:
Viver no limite do ser
Uma visão de Canção da meia idade, de Gilson Soares
Gilson Soares sempre nos surpreende. Seja na estabilidade do seu ser, ou justamente transgredindo essa estabilidade. Seja mostrando sua poesia, dedicando-se ao Clube do Vinil, com o qual se confunde, ou viajando por muitos quilômetros em sua bicicleta para testemunhar e proteger os longos e caudalosos rios brasileiros, fonte de vida mas tão maltratados ultimamente.
Poeta da concretude, mas de um concreto suave que se funda na Pedra de João Cabral, mas também na doçura de Manuel Bandeira.
A segunda edição de Canção da meia idade possibilita-nos o acesso à bela poesia deste grande poeta.
Gilbert Chaudanne, no prefácio, compara-o a Cesário Verde e Fernando Pessoa, para quem o “poeta não é um sonhador”, antes é um “guardador de parafusos. A poesia é uma casa de ferragens e não uma hierarquia celeste.” Chaudanne associa também sua poesia a “Rilke e João Cabral, sem a secura e a “metalidade”, a presença cortante do metal, neste caso”. E ressalta: “ O sentimentalismo é o crepúsculo: sangue de sol, encenação da morte sangrenta — suicídio do sol.
Esta última associação me faz lembrar a sonoridade e a visualidade da poesia de Emily Dickinson:
“Who is the East?
The Yellow Man
Who may be Purple if He can
That carries in the Sun.
Who is the West?
The Purple Man
Who may be Yellow if He can
That lets Him out again.”
O poema Uma flor se abriu lembrou-me mais uma vez Emily Dickinson:
The Opening and the Close
Of Being, are alike
Or differ, if they do,
As Bloom upon a Stalk.
That from an equal Seed
Unto an equal Bud
Go parallel, perfected
In that they have decayed”.
Visualidade dickinsoniana que também aparece, por exemplo em Marianas e Bachianas: Do quadrado amarelo da Janela é possível antever os amanhãs […]
A referência a João Cabral de Melo Neto que me ocorre, fica por conta do belo poema Ancila, em Gilson, com o poema A mulher e a casa, em João:
Ancila:
A casa me contorna
me adorna, me contém:
bela, clara limpa
aconchegante,
a cas me abriga
como um vestido bonito
feito sob medida;” […]
A mulher e a casa:
Tua sedução é menos
de mulher do que de casa:
pois vem de como é por dentro
ou por detrás da fachada. […]
Mas, parece-me, que a grande questão da poesia de Gilson Soares é o tempo, como no poema Réveillon:
e se esquece de ver
que o tempo do homem tem o tamanho do homem
e caminha correto, irreversível e silencioso
sob a sua pele […]
E, em como termina o poema Limite: eu vivo no limite do que sou!
Belo limite poético.
Dito o que foi dito, cabe agora ao leitor apreciar a leitura de um livro que pode representar um momento de uma carreira em permanente evolução mas que não deixa de ser uma obra muito bem acabada. Adquira seu exemplar na loja virtual da editora Cândida, no link https://loja.editoracandida.com.br/cancao-da-meia-idade