A “má notícia” na literatura contemporânea do Espírito Santo

Perto do lançamento de novo romance de Reinaldo Santos Neves, conheça um dos livros anteriores do autor.

Por Ana C. Araújo[i]


Sempre que olhamos para a linha do tempo que costuma representar a história humana, somos tentados a nos deixar levar pela ilusão de que realmente está tudo ali. A imaginação de que os períodos e processos evolutivos da nossa espécie se deram de forma rápida, linear e completa e a sensação de celeridade nas transformações provocadas no meio e operadas de volta nos seres humanos possivelmente surge do fato de que, mesmo em contato habitual com termos como “séculos”, “milênios”, “eras” e “anos-luz”, a abstração para conceber essas medidas sempre nos exigirá algum esforço, nunca surgirá de forma natural e, para a maioria de nós, será um exercício mental mais complexo quanto maior for a representação numérica dessa medida.

Nosso tempo apresenta um grau de desenvolvimento das relações humanas, políticas e diplomáticas que fazem boa parte da humanidade ter a crença em um mundo ajustado, harmonioso e pacífico. Da mesma forma, o acúmulo de conhecimentos, o avanço técnico-científico e a difusão de informações em massa são alguns dos dispositivos contemporâneos que supostamente nos colocam no ápice de uma civilidade genuína. Em outras palavras, o homo sapiens moderno (ou pós-moderno) é esse ser que olha para a linha do tempo da História e se vê muito distanciado daquela humanidade “primitiva”, “selvagem”, submetida a crenças, mitos, envolta em conflitos e guerras por territórios, exposta a todo tipo de enfermidades e escassez, enfim, um rascunho de seres e de sociedade dos quais a humanidade “do presente” surgiu, obra acabada e superada.

E o que esses assuntos têm a ver com o livro “Má notícia para o pai da criança”? É possível dizer: tudo. A começar pela provocação presente no título da obra. Por que “má notícia”? O que houve com a criança? Por que a notícia é ruim especificamente para o “pai da criança”? Espero que você, leitor, esteja sendo provocado por essas perguntas antes de ter lido o conto ou mesmo o livro, pois, a depender das hipóteses que você formule para respondê-las, poderá se chocar com o seu grau de perversidade ou com o grau de civilidade e ironia presentes no título.

Os nove contos reunidos nessa coletânea confrontam de maneira perturbadora essa pretensa distinção da humanidade contemporânea, com enredos envoltos numa aparente simplicidade que logo se converte em constante tensão. As personagens estão sempre no limiar, prestes a despencar e, de fato, despencam, acordam em queda e desilusão. O leitor, vendo-se no corpo das personagens, enquanto vive no espaço-tempo da leitura, se questiona de quem são os sentimentos e sensações que lhe transpassam: será a dor da mulher violentada com o filho na barriga, a fúria de seu companheiro ou o ardil de sua sogra? Será o espanto do Conde acusado de estupro ou o frisson da jovem que levanta a acusação? Será a mágoa do marido traído, o temor da esposa surpreendida em adultério ou a lascívia de Bernal Francês, o amante convertido em duplo? Ou, ainda, serão os sentimentos do pai que recebe a má notícia, da mãe protetora ou da criança vitimada? São personagens tão humanas em seus vícios e em seus sofrimentos, tão arquetípicas e contraditórias, que poderiam facilmente deixar as páginas do livro, vestir a roupa do leitor e sair povoando as ruas da cidade ou os feeds das redes sociais (sem filtros!), desfazendo o mito narcísico da evolução humana em linha reta e crescente, no plano cartesiano. Na profundidade, os contos mostram que guardamos ímpetos que, por vezes, fazem suprimir nossa racionalidade, entretanto, a elaboração literária com que se apresentam espelha o que a genialidade humana é capaz de alcançar por meio da linguagem. A escrita de Reinaldo nos faz lembrar que trazemos conosco a capacidade de empregar nossa razão para suscitar e exprimir estesias, até mesmo das situações mais brutais e violentas.  

Ao tomar a tradição oral do romanceiro português como ponto de partida para seus enredos, nosso escritor comprova que a humanidade, de algum modo, sempre teve essa capacidade ou essa necessidade de recriar suas experiências e dar forma à sua imaginação. Nos primórdios, quando a história ainda não era História, a fabulação se construía e se transmitia por meio da dança, dos desenhos, do gestual, dos ritos, linguagens outras. O avançar da trajetória fez surgir novas formas de linguagem e, a partir de dado momento, entra a oralidade como a principal ferramenta de fabular, de perpetuar os vínculos ancestrais e suas abstrações artísticas e culturais, de transmitir conhecimentos e guardar elementos da psique humana.

O diálogo que o escritor estabelece com a herança literária oral vinda do continente europeu, recolocando-a em um novo contexto, recontando antigas histórias em uma nova língua – que não nos parece portuguesa nem brasileira, mas que estranhamente compreendemos – mostra que as subjetivações humanas não cabem em linhas do tempo ou em unidades de medida, porque passado e presente, moderno e arcaico, se entrelaçam na contemporaneidade, como nos propõe refletir o italiano Giorgio Agamben[ii]: “[…] o presente não é outra coisa senão a parte de não-vivido em todo vivido […] que, por alguma razão (o seu caráter traumático, a sua extrema proximidade), neste não conseguimos viver. A atenção dirigida a esse não-vivido é a vida do contemporâneo. E ser contemporâneo significa, nesse sentido, voltar a um presente em que jamais estivemos”.

Em síntese, o que fica da visita à literatura de séculos passados, retomada na produção contemporânea desse escritor capixaba, é que os ímpetos provocados por nossos desejos, ambições, medos, apegos e veleidades nos acompanham hoje, como nos acompanhavam na Idade Média; a criatividade, a sensibilidade, as elucubrações e ressignificações afloram nos sujeitos do Antropoceno, assim como brotavam nos seres do Neolítico. E a experiência literária possivelmente é a que melhor nos permite concretizar, no tempo presente da leitura, a arqueologia daquilo que não podemos viver, o não-vivido que, segundo Agamben, não cessa de se repetir.

Leituras como essa que Reinaldo nos apresenta fazem com que desejemos o controle remoto do tempo, ora esticando os minutos para ficarmos detidos um pouco mais em suas palavras, em sua sintaxe reinventada, em suas entrelinhas, ora encurtando os dias para encontrarmos a próxima leitura. A boa notícia é que, cinco anos após sua última publicação, em breve teremos o próximo lançamento de Reinaldo Santos Neves, pela Editora Cândida e, certamente, poderemos viver muitas horas ou eras no prazer de estar em mais um de seus livros.


[i] Parapixaba, professora de Língua Portuguesa da rede pública estadual do Espírito Santo, leitora e mediadora de leitura; como boa filha de costureira, costuma brincar de alinhavar ideias e palavras.

[ii] Agamben, Giorgio. O que é contemporâneo? e outros ensaios [tradutor Vinicius Nicastro Honesko] – Chapecó, SC: Argos, 2009.