Parapixaba, Ana Cláudia Araújo é professora de Língua Portuguesa da rede pública estadual do Espírito Santo, leitora e mediadora de leitura; como boa filha de costureira, costuma brincar de alinhavar ideias e palavras.
Inclassificável. É a resposta àquela pergunta que fazemos logo depois de julgar a capa do livro e constatarmos que se trata de uma obra escrita em prosa: “É romance ou são contos?”. Intermitências não nos dará uma resposta entre essas duas opções. Poderá ser lido tanto como um romance de descontinuidades, construído sobre interrupções e retomadas, mas também poderá ser tomado em doses de antologia, cujo conteúdo vai se desfiando, a cada capítulo, em diferentes enredos que, por sua vez, se reconstroem em torno do mesmo fio condutor, este, sim, ininterrupto. Ainda assim, mesmo ao chegarmos à última página, haverá incertezas quanto ao gênero da obra. Não haverá dúvidas, porém, de que a classificação do gênero é um detalhe completamente indiferente, uma vez que o encontro com a palavra literária e os caminhos a que ela nos conduz surgem de qualquer maneira.
Embora se desenvolva em poucas páginas, a narrativa de Adriana Meneguelli abarca uma amplitude espaço-temporal e uma vastidão de ideias, referências e intencionalidades, que em diversos momentos chega a tirar o fôlego do leitor. Para começar, o tempo narrativo se caracteriza por flutuar entre passado, presente e futuro com impressionante fluidez e, na maioria das vezes, os saltos temporais não são demarcados por datas ou advérbios cronológicos, mas a partir de fendas que se abrem com muita naturalidade na estrutura do texto. A autora alcança esse efeito, explorando ao menos três estratagemas: o onirismo, o misticismo e, com maior evidência, a memória.
Recorrente em diversas produções artísticas e literárias, o onirismo é um recurso muito explorado pelo estilo surrealista, no qual o sonho é aproximado do delírio, da fuga da realidade, da alucinação e da expressão de ambientes insólitos, habitados por uma profusão de seres e objetos tão diversos, quanto confusos, a exemplo das clássicas pinturas de Max Ernst e de Salvador Dalí. Em Intermitências, há inúmeros momentos com fortes referências aos estudos da mente e com alusões às teorias que se debruçam sobre a psiquê. Sendo assim, não é difícil verificar paralelos entre o sonho e as diversas formas de manifestação do inconsciente.
Cabe destacar o uso do recurso onírico na “Cena 1: José”, em que a personagem sofre um lapso temporal, após um acidente de carro em uma famosa curva da cidade de Vitória e, entre perder e recobrar a consciência, vivencia a experiência de (re)conhecer a cidade em um tempo remoto. Essa primeira cena reverbera ao longo de todas as demais cenas e, sempre que a suspensão do estado de vigília ressurge (o sono, o devaneio, a perda da consciência, a morte), nota-se que as personagens experimentam o estado onírico, não como a “via régia para acessar o inconsciente” – segundo a teoria freudiana, mas como uma via de expansão da consciência e até mesmo dos limites do corpo físico, que transita em diferentes espaços ou no mesmo espaço em diferentes tempos, vivenciando experiências que tanto são ancestrais quanto são futurísticas, diferenciadas na narrativa por meio da linguagem, ora cientificista, elaborada e alinhada com as ideias dos grandes estudiosos do inconsciente, ora espiritualista, envolta em misticismos, aproximando-se da ancestralidade plural de pajés, griôs, pretos velhos e ciganas.
Outro exemplo de como os estados oníricos são explorados nessas sobreposições temporais da obra está nas cenas em que surge um estado de encantamento, por meio de um transe espiritual ou um episódio ritualístico, nos quais as personagens se conectam com situações do passado ou manifestam mensagens premonitórias, que levam a alguns encontros/reencontros e transições entre espaços-tempos. A premonição costura, por exemplo, os destinos das personagens Maria e Benedetto, cujo primeiro e único encontro fora prenunciado ao jovem napolitano por seu amigo Frei Juan:
Descobriu logo em seguida ser aquela a Maria com quem o Frei o vira em sonhos premonitórios. Haverá uma troca entre vós, e com ela muito aprenderás; ela, por sua vez, levará consigo para a batalha vindoura a devoção e a doçura que emanarás. Ser-lhe-á bálsamo e ao mesmo tempo fortaleza. E o amor varou a noite antecipando-se à Vitória (Cena 2: Maria, p. 22/23)
Em outras cenas – em outros tempos e lugares – os amantes se transfiguram em Benedita e Elisário, mas o encontro amoroso não se dá no que chamaríamos de campo da realidade, mas no campo do imaginário, surgindo na forma de lembrança ou na forma de anseio onírico, como se pode ler nos trechos a seguir:
“Suspirou fundo com as lembranças que mais lhe marcaram a vida e que lhe seduziam na morte, as noites de amor com Elisário que fizeram estremecer aquela serra. Graças aos santos espíritos, aos amados orixás, a maldade daquela terra não os descobriu naquele canto da pedra.” (Cena 10: Elisário, p. 47)
Elisário olhou para as Três Marias e pediu: esta noite quero sonhar aquele sonho, com o corpo dela sobre o meu corpo, balançando com as águas do mar, e dizendo que estaria sempre comigo. Colheu as flores de sempre e as colocou ao seu lado, para dormir com o cheiro dela lhe inundando o corpo, a alma, o sonho, que era mais real que a própria vida.” (Cena 15: Cari-jaci-caá, p. 64)
“O sonho […] era mais real que a própria vida” é a frase que sintetiza a estratégia narrativa de Meneguelli que, por meio do panorama onírico, consegue cavar sensações muito íntimas no leitor, ao mesmo tempo que consegue dar fluidez ao enredo, apesar das constantes idas e vindas dessas personagens que se permutam e se transmutam no espaço-tempo narrativo. O engendramento das personagens, aliás, parece dar fundamento ao que Shakespeare afirma ao dizer que “somos da mesma matéria de que são feitos os sonhos”.
Outra estratégia bastante recorrente e enfática na construção da narrativa é a memória. A memória, pode-se dizer, é explorada em suas mais diversas categorias, a começar pelos traços geográficos e paisagísticos do Espírito Santo que, prenunciados já no subtítulo – “entre a pedra e o mar” – constroem um ambiente facilmente reconhecido, sobretudo para o leitor familiarizado com os contornos e elementos naturais que se mantêm quase que inalterados ao longo dos séculos (a baía de Vitória, o Penedo, as areias monazíticas), mas também há inúmeras lembranças das interferências humanas feitas nessas paisagens (as áreas aterradas, a cidade edificada na parte alta da ilha e o efeito “presépio” da sua iluminação noturna, as avenidas, rotas e curvas).
Junto à paisagem, outros elementos recorrem à memória coletiva que conforma, neste caso em especial, uma brasilidade toda capixaba (os “imigrantes”, as “desfiadeiras”, a “Cari-jaci-caá”, o “Monte Álvaro”, a “fazenda Romão” e os orifícios de uma pedra que lembram dois olhos ou “duas conchas”, “yticu-tuquara” na língua indígena).
Para o leitor menos familiarizado a esses traços da identidade cultural, a estratégia não se anula, mas se recompõe a partir de elementos que vencem fronteiras, regionalidades e nacionalidades e, na obra, abarcam uma comunidade global.
Nesse aspecto, é possível destacar as diversas referências históricas à colonização sul-americana, referências musicais (“Back in Bahia, do Gil”, o som do agogô numa roda de orixás), referências de cunho artístico-performático (a artista e naturalista cachoeirense Luz del Fuego, “a mais sexy e corajosa bailarina das Américas”), citações cinematográficas (Han Solo e os jedis, da saga Star Wars), e, principalmente, as alusões de cunho literário-filosófico, com referências diretas a Ernest Hemingway, Hermann Hesse, Lygia Fagundes Telles, Ptolomeu, Piri Reis, Poincaré, além de outras referenciações, por exemplo, ao psiquiatra “Carl” (Gustav Jung), à escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, ao escritor e poeta Dante Alighieri, ao best-seller “Mulheres que correm com lobos”, da junguiana Clarissa Pinkola Estés, ao conto “A queda da casa de Usher”, de Edgar Allan Poe; as mitologias africanas, greco-romanas e indígenas; e, por fim, as reportações a outros campos de conhecimento como a Astronomia e a Cartografia.
A abertura de fendas no espaço-tempo da narrativa se vale, ainda, do acionamento da memória sensorial, com especial destaque às sensações olfativas-gustativas que despertam lembranças nas personagens que as experimentam e, ao mesmo tempo, no leitor que, partilhando de memórias sensoriais semelhantes, se conecta a sensações particulares despertadas pelo paladar, olfato e pele, como exemplificam as passagens a seguir:
“A última lembrança foi do gosto de maresia mar adentro, corpo adentro, e do silêncio que invadiu tudo antes de fechar os olhos […]. O cheiro de peixe que chegava por cima da divisória da casa sem forro trouxe-o à tona” (Cena 1: José, p. 19);
“Seguiu um cheiro de açucena morro acima até se deparar com uma estreita ladeira” (Cena 2: Maria, p. 22);
“O vento nordeste trouxe então, inesperadamente, um perfume forte de flores que invadiu a negra noite do Monte
Álvaro” (Cena 10: Elisário, p. 47);
“Inspirou profundamente o ar puro de mato misturado ao cheiro de maresia, trazido pelo vento sul…”
(Cena 11: Duas conchas, p. 49);
“Aproveitou para inspirar o ar frio da serra; inesperadamente, um cheiro de lavanda invadiu-lhe os sentidos…” (Cena 23: Lavanda, p. 86);
“Inspirou um ar frio, com cheiro de mato molhado misturado ao do café que o preto velho fazia…” (Cena 24: Sonhos, p. 90/91); e
“[…] estava bem longe de casa, mas o hábito cultivado desde pequeno, do café com um pouquinho de leite, nunca o havia abandonado.” (Cena 28: Ajustes, p. 104).
O texto de Meneguelli apresenta, enfim, a força mística de uma dança circular, na qual as estratégias descritas se revezam, ora mais vaporizadas, ora mais sólidas. Isto, por si só, proporciona aos que se entregam à leitura uma “prazerosa imersão gastronômica cercada de livros e mapas cheirando a mofo” (Cena 28: Ajustes, p. 105) ou cheirando a flores, a mato, a maresia e café. Entretanto, cabe ressaltar que não estamos diante de uma obra isenta, centrada apenas na fruição e abnegada de uma função “para além” do princípio do prazer com o texto. Todos esses elementos que acionam sentidos e ligam passado, presente e futuro, num contínuo ir e vir, estão entrelaçados com uma intencionalidade bastante vívida.
Ao tecer uma fazenda de diferentes texturas, as quais, mesmo diversas e entrecortadas, se harmonizam de forma coerente, a obra parece propor a tessitura necessária para que se conte uma nova história, ou melhor, para que se resgate uma velha história que, há séculos, corre de forma paralela e subterrânea à história oficial. Isso se coaduna com a denúncia que se faz na “Cena 29: A falta”:
O que resta é a falta: de tudo o que se poderia ter vivido, mas a limitação impediu; do que poderia ter sido exibido em technicolor, mas veio à tona em gris; de os heróis do cotidiano terem seus nomes em placas de ruas, em vez de estarem nelas gravados nomes de vilões. (p.107)
A “Memória” com letra maiúscula, essa que muitas vezes se alinha com a história oficial, está presente do início ao fim da obra, forma as tramas da narrativa, como forma nossa psiquê, os nossos sonhos e percepções. Entretanto, a obra procura sinalizar que, se não é possível romper com essa memória, também não é preciso endossá-la, prestar-lhe continências. Ainda podemos rejeitá-la como “história única”, levantar contrastes, buscar contestações. É exatamente o que Adriana Meneguelli procura fazer em sua narrativa: recortar e recosturar a memória forjada na linguagem do opressor, essa memória montada de forma tão unilateral e imposta com tamanha violência que até mesmo o modo de interpretar as pedras e o mar obedece ao ponto de vista de quem a forjou.
Na proposta dessa nova tessitura, cabe questionar por que enxergamos na formação rochosa à beira da estrada um Frade e uma Freira? Não poderíamos conceber, alinhados inclusive aos indícios históricos, o Frade petrificado ante a uma jovem indígena de longos cabelos negros ou mesmo diante de um rapaz de madeixas compridas, como eram comumente cultivadas em tempos passados? (Cena 13: O frade, p. 57 a 59).
O livro Intermitências, além de uma prazerosa experiência com a palavra literária, é um convite a esse tipo de subversão da história e do agora, não mais sob o ponto de vista do dominador, mas sob a ótica (ou sob os anseios oníricos) daqueles que foram apagados, calados e dominados. Sob essa perspectiva, a obra aponta para a possibilidade de enxergar os ancestrais desta terra, sobretudo os povos ameríndios e os povos da diáspora africana, não mais como selvagens, atrasados, acomodados, mas como visionários futuristas, cuja grande sabedoria e a longa experiência com a terra pode ser capaz de nos ensinar uma nova linguagem para sonhar e escrever outra história.
REFERÊNCIAS
ADICHIE, Chimamanda Ngozi. O perigo de uma história única. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2006.
KRENAK, Ailton. Futuro ancestral. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.
MENEGUELLI, Adrianna. Intermitências. Vitória: Cândida, 2021.
RIBEIRO, Sidarta. O oráculo da noite – A história e a ciência do sonho. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.