Dez anos sem João Ubaldo

Jorge Solano escreve sobre Viva o povo brasileiro, célebre obra do escritor João Ubaldo Ribeiro

Por Diego Mascarenhas Salvador, Brasil

Faz dez anos, desencarnou a alma de João Ubaldo, tendo cumprido seu fadário de narrador transverso da história e das estórias de seu povo. Suspeita-se que, diferente de outras almas desencarnadas que, quando não vão para esferas mais elevadas, ficam a circular na terra onde deixaram sua matéria inerte, o espirito de João Ubaldo teria migrado para Amoreiras, na ilha de Itaparica, onde, pelas conjunções especiais dos fortes elementos universais, as almas dos mortos permanecem até que voltem a encarnar.
Não se pode afirmar que João Ubaldo tenha reencarnado em outro corpo, masculino ou feminino, branco ou negro, neste ou em outro país, falando a mesma língua do mesmo povo brasileiro em que narrou suas estórias. Mas sabemos que ele, em sua transição por este mundo, pelo Brasil e pela Bahia encarnou e repercutiu as diversas vozes deste povo brasileiro.

Livro foi traduzido para o alemão, espanhol, francês e italiano. Foi vertido para o inglês pelo próprio autor 

Muitas vozes ganham vida em seu narrar, vozes que não apenas falam de suas ideias e sentimentos, mas fazem isso no seu sotaque, no seu registro de fala, na sua cultura original. Vozes que, para manter o espírito metafórico com que iniciamos essa conversa, se reencarnam com toda sua corporeidade original.
Assim ouvimos tanto o pernóstico cônego D. Francisco Manoel de Araújo Marques com seu estilo pseudoclássico, a falar de elemento flogístico, quanto o esperto descendente de um marinheiro inglês com uma negra Amleto Ferreira(nosso Hamlet brasileiro), tentando tornar-se branco na pele e na fala. Ouvimos a voz do filho de Amleto, Bonifácio Odulfo, falando como um poeta romântico na juventude e se expressando como empresário oportunista na maturidade. Ouvimos a fala do prático e oportunista Nego Leléu, que quer apenas “se virar” para sobreviver num país racista e opressor. E ouviremos a voz de Maria da Fé, que simboliza e representa o idealismo de todos os que, de algum modo, lutam para combater o sistema de dominação e injustiça. Ouvimos as vozes de muitos negros, inclusive daqueles que foram lutar na Guerra do Paraguai na esperança de um mundo melhor – e ouvimos seus relatos dos horrores da guerra em que desmistificam o discurso heroico de muitos “patriotas”.

O espetáculo “Viva o Povo Brasileiro [de Naê a Dafé]” é uma versão musical da obra do escritor João Ubaldo Ribeiro. A apresentação tem direção de André Paes Leme e músicas originais de Chico César. Apresentado em julho no Nordeste, o musical esteve em cartaz em diversos teatros do Brasil.


Nessa obra radicalmente polifônica que é Viva o povo brasileiro são desmascarados aqueles que se sentem superiores, por sua pretensa pureza racial europeia. É desmascarado o patriotismo retórico. É desmascarado o racismo que faz parte dessa cultura brasileira que já se achou cordial.
Assistimos também às estratégias de sobrevivência dos negros e dos pobres nesse Brasil.
Confesso que, quando vi o título desse romance, pensei que seria mais um discurso ufanista a respeito de nossa pátria, mas bastou ler a primeira página para perceber a originalidade desse livro que, longe de ser ufanista, percorre uma parte da história do Brasil, tendo como ponto de referência a ilha de Itaparica. A partir daí, mostra um povo vivo com suas contradições e problemas, com seus medos e sonhos, com suas artimanhas e crenças. Por isso, o título não é uma exclamação de otimismo e orgulho, é um retrato do modo de ser da gente que mora nessa terra brasilis.
Mas Viva o povo brasileiro também é uma história de esperança e fé: a de que esse país pode ser menos racista, menos opressor, menos preconceituoso, menos machista se o próprio povo encontrar os caminhos de sua libertação.

Jorge Solano é autor do livro Mitos em Viva o povo brasileiro, obra a ser lançada em breve pela editora Cândida