Vinha, Elisa, recorde

Depois de deixar Riacho Doce, voltei (agora na contramão das plaquinhas do Celsão) até bem perto de Itaúnas, de onde retomei a estrada que conduz ao casario que se formou ao redor da venda e da pensão de seu Pedro Canário e apropriou-se do seu sonoro nome.

Ainda era manhã quando comecei a cruzar, de volta, as matas de eucalipto que povoam hoje, uma boa parte daquela região.

Pelo menos dois fatos marcantes da minha viagem pelo Arco Norte iriam acontecer ainda naquela quinta-feira a caminho de Pedro Canário: foi na estrada de terra batida que se estende pelo vale do rio Itaúnas, que alcancei o meu recorde de velocidade nesse passeio de pouco mais de 1.000 km. O velocímetro da desenfreada magrela – um pequeno computador de bordo, que viaja agarrado ao guidão e plugado a um sensor, no garfo, que capta e contabiliza os giros da roda – registrou, num instigante e deserto declive, a velocidade de 58km/h.

Em muitos outros momentos da viagem estive próximo dessa velocidade, mas aquele número manteve-se invicto até a minha chegada a Vila Velha alguns dias (e um bom número de velozes e deliciosas descidas) depois.

Outro fato que marcou aquela quadra do Giro foi a minha passagem pelo Assentamento Paulo César Vinha.

Por mais de um motivo, considerei marcante a minha passagem por ali.

Conheci Vinha e mesmo não tendo desfrutado de uma maior convivência com ele, cheguei a participar de reuniões com a sua presença, em Vila Velha. E certamente trocamos, ao menos, cumprimentos cordiais.

Como toda a comunidade capixaba, fiquei surpreso, assustado e indignado com o covarde assassinato dele.

Vinha era, então, um homem jovem, bonito, inteligente e corajoso.

Além disso, nos posicionávamos do mesmo lado no campo onde se travavam algumas das lutas daquele tempo de esplendor (…e dor).

As placas de sinalização no trajeto, indicando o Assentamento, já haviam despertado a minha curiosidade e a minha emoção.

Acostumado que estou a pedais rápidos, fáceis e muito agradáveis pela Rodovia do Sol, de Vila Velha – moro no bairro Nossa Senhora da Penha – até o Parque Estadual Paulo César Vinha, em Setiba, alegrei-me com a menção a esse herói conterrâneo e contemporâneo ali, naquele ponto extremo do nosso estado.

Deparei-me com uma vila rural organizada, disciplinada e que não faz segredo dos seus posicionamentos políticos e ecológicos, conforme pude constatar nas faixas, placas e bandeiras que o assentamento ostenta.

A tarde estava só começando e a escola do lugarejo – com uma boa estrutura recreativa e esportiva – exibia, naquele momento da minha passagem, toda estridência da energia infantojuvenil que grassava pelo pátio ensolarado.

Meio sem saber a quem recorrer, abordei uma moça que transitava com uma inconfundível (e simpática) postura docente, em direção ao portão de entrada, por onde eu, titubeante, zanzava.

Falei pra ela do meu interesse em entregar para a biblioteca da escola um ou dois exemplares do meu livro recém-lançado.

Informei ainda que sou de Vila Velha e que estava de passagem por ali.

Ela – atenciosa, gentil, delicada – depois de confirmar minha conjectura sobre a sua identidade funcional, se dispôs a encaminhar a doação e me contou que uma poeta passando por ali (Não de bicicleta, acentuou divertida) também tinha doado exemplares de livros seus para a biblioteca da escola: Elisa Lucinda.

– Ah, o mundo, ah, a vida!

Balbuciei emocionado, enquanto a professora me olhava com olhos de surpresa e incompreensão e se afastava agradecida, folheando, curiosa, um dos exemplares de Minério.

– Ah, o mundo, ah, a vida!

Tartamudeei, agora pra mim mesmo, enquanto retomava a estrada solitária e silenciosa:

Vinha e Elisa dois quase-amigos meus – belos e valentes – com quem cheguei a velejar em barco comum pelos ocasionais rios e mares que se cruzavam na turbulência daquelas nossas convivências juvenis.

Ele, Vinha, se foi, violentamente ceifado da sua trilha de sonho;

ela, Elisa, ilesa, segue luzindo por caminhos que abre com as próprias mãos – e olhos! – pela vastidão do mundo.

Encontrar uma chispa dos dois ali, no acaso daquela tarde que se abria, tinha pra mim um significado que, mesmo não podendo ser apreendido pelo olhar amistoso da professora, será, espero, compreendido por você que agora lê este relato do meu giro pelo arco, que aqui arqueja comovido.

Crônica publicada originalmente no site Estação Capixaba. Fotos: Gilson Soares.

Gilson Soares é poeta.
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