Vida que segue – Erlon Paschoal lança nova peça

Escolher o caminho é preciso

Por Gilberto Gouma

A peça Vida que segue, de Erlon José Paschoal, apresenta-se como um retrato contundente e atualíssimo dos conflitos e das contradições que permeiam a vida em família na contemporaneidade. De forma habilidosa, o autor constrói um universo familiar de classe média em que nenhum laço afetivo consegue se desprender por completo das tensões sociais, políticas e econômicas em curso na sociedade. Ao mergulharmos neste texto, percebemos a engenhosidade de uma carpintaria teatral que amarra com destreza cada diálogo, cada cena, sustentada por um embate contínuo entre personagens que, aparentemente, poderiam estar em qualquer lar brasileiro.

A urdidura dramática aposta em diálogos fluidos, com expressões cotidianas críveis, que ao mesmo tempo nos prendem e convidam à reflexão. Através das onze cenas, cada fala revela uma faceta do nosso tempo: machismo, preconceito, homofobia, aporofobia, hipocrisia religiosa, consumismo e desrespeito, que fazem emergir uma crítica social potente e necessária. Embora muitas das discussões pareçam emergir de questões “corriqueiras” – como reclamações de gastos, divergências de opinião política ou disputas sobre sexo e afeto – logo se percebe que, no fundo, os personagens encenam um microcosmo da sociedade. É ali, naquele ambiente doméstico, que se configuram as estruturas de poder e de submissão, a exposição de carências afetivas, bem como as distorções e os valores materialistas tão presentes em nossa época.

O texto de Erlon José Paschoal prima por ser absolutamente coerente com a realidade: Ivo, o jornalista aposentado de ideias progressistas, esbarra a todo momento na estreiteza e na brutalidade de Fábio, o genro de extrema-direita que exala ódio aos pobres, preconceitos de gênero e um apego irrestrito ao dinheiro. Esse contraste, quase didático, entre a lucidez do protagonista e a postura retrógrada de seu antagonista, faz emergir a pergunta inevitável: como viver em harmonia quando se está em extremos ideológicos tão marcantes? A peça não oferece soluções fáceis, mas, ao trazer a desavença para dentro de casa, obriga o público-leitor a enxergar que esses conflitos, tão presentes nos noticiários, podem eclodir em nosso círculo mais íntimo.

Nesse caldeirão fervente de tensões familiares, o espectador (ou leitor) se depara com relacionamentos tóxicos e contradições que beiram o absurdo, mas que são assustadoramente plausíveis. Mãe e filha se amam e se repelem, vivem um misto de dependência e ressentimento. Ivo e Ruth, embora morem juntos há anos, não encontram um ponto de equilíbrio: o companheirismo que deveria unir o casal se dissolve em egoísmo, frustração e comodismo. Já Melanie, ao lado de Fábio, revela como uma relação dominada pelo machismo e pela imposição da força física pode facilmente desembocar em violência doméstica – tragédia comum a milhares de mulheres que, por vergonha ou medo, silenciam diante das agressões. É justamente esse silêncio que a peça expõe ao mostrá-lo sendo abafado pela hipocrisia dos “cidadãos de bem”, dispostos a encobrir as aparências para preservar uma fachada de perfeição.

Um dos elementos mais brilhantes do texto é a figura de Rosa, a empregada doméstica que acompanha, quase em silêncio, todos os acontecimentos da casa. Sua presença constante, porém discretíssima, simboliza as tantas pessoas invisíveis que sustentam o cotidiano e não têm direito de voz. A elas é destinada uma simples “sobrevivência” e, mesmo assim, um salário que mal paga suas necessidades básicas. É a moderna escravidão, ancorada em relações de poder e dependência, que Vida que segue retrata de forma aguda. Mas a força desse personagem emerge no clímax final, quando Rosa assume o centro do palco, canta uma espécie de canção-panfleto e denuncia, em versos carregados de revolta, todo o sistema de desigualdade e injustiça que permeia a vida dos mais pobres. Nesse momento, a peça se ergue como um grito que ultrapassa os muros do teatro, convidando o público a refletir sobre sua própria responsabilidade na perpetuação (ou transformação) da realidade.

Erlon José Paschoal, com uma carpintaria teatral muito bem estruturada, faz da linguagem simples e cotidiana um instrumento para nos chocar e, ao mesmo tempo, nos enredar na história. Cada fala, cada pausa, cada gesto sugerido nas rubricas reforça a mensagem principal: a família, enquanto instituição é também palco de disputas ideológicas, e não há como camuflar preconceitos ou ocultar violências que ali emergem. Todos os personagens, sem exceção, trazem contradições profundas, e é justamente essa humanidade – repleta de falhas, grosserias, sonhos difusos e ilusões de grandeza – que enriquece o texto.

Assim, ao abrir este livro e mergulhar em suas páginas, o leitor se verá diante de um retrato fiel dos embates de classe média e, simultaneamente, de um espelho que reflete as sombras de uma sociedade marcada pelo consumismo e pela busca incessante por status. Mas se engana quem pensa que Vida que segue se limita ao pessimismo. A inserção de um novo ser – o bebê que está por vir – sugere a possibilidade de mudança, de um futuro que, se não é assegurado, ao menos é premente. E é nessa fresta de esperança, contida também no canto final de Rosa, que reside a beleza maior desta obra: a de que a arte pode nos conduzir a um olhar crítico, mas igualmente solidário, sobre nossa realidade.

Para quem estiver prestes a ler as cenas seguintes, fica o convite a perscrutar cada fala e cada gesto destes personagens tão verossímeis. Vida que segue não é apenas uma história familiar envolvente; é um espelho da sociedade, um texto rico em sutilezas que transita entre humor amargo, crítica social e uma veemente denúncia de práticas e pensamentos que, lamentavelmente, nos cercam. Trata-se de uma dramaturgia vigorosa, que nos faz refletir sobre as armadilhas do egoísmo, a negação do outro e o poder destrutivo da alienação. Ao fim, espera-se que, como Rosa, possamos nos levantar e romper o silêncio, dançando e cantando uma melodia de inconformismo. Essa é a convocação que o autor nos faz.

Boa leitura e que esta peça, com sua força crítica e teatralidade exemplar, nos inspire a olhar para dentro de casa, para dentro de nós mesmos, questionando valores, rompendo o silêncio e, quem sabe, promovendo pequenas – ou grandes – revoluções pessoais. Afinal, a vida segue… mas temos sempre a opção de escolher o caminho.

Gilberto Gouma é escritor, compositor, pesquisador, professor do Departamento de Arte da Universidade Federal Fluminense (UFF-RJ).