
Você certamente não se lembra que o dia 26 de outubro de 2016 foi uma quarta-feira.
Por que haveria de se lembrar, não é?
Pois eu me lembro muito bem.
É que no início da manhã daquele dia, eu transitava entre Santa Teresa e Itarana, pelos cocurutos do conjunto de serras que se amontoam no centro da (estreita) cartografia capixaba.
Não era a primeira vez que eu pedalava por essas grimpas.
Acostumado a desenhar (com o rastro da magrela)diferentes e variados roteiros na desigual topografia do Espírito Santo, já trafegara por ali mais de uma vez.
Tanto indo – como ia naquele dia –, quanto voltando.
Só que enquanto deslizava, agora, por aquele extenso e silencioso declive, eu me peguei perguntando pro vento:
– O que terei feito pra merecer tão prazeroso presente matinal?
Esse tipo de pergunta (acho) todo mundo já se fez alguma vez.
É aquele questionamento comezinho que nos acossa quando, de supetão, recebemos um desses prêmios generosos que a vida, vez ou outra, nos dá.
Acho importante (e oportuno) informar que não tenho qualquer proximidade com a modéstia. Nem com aquela modéstia honesta dos humildes, nem com a outra, a modéstia mentirosa dos hipócritas.
Não sou, portanto (nem de verdade, nem de mentira) um cara modesto.
Ocorre que estava mesmo com essa premente dúvida existencial (será que mereço tudo isso?) diante da inusitada alegria que tomou conta de mim, assim que a estrada (agarrada ao lombo da serra) desandou a descer.
Você, mesmo não sendo (como eu) um ciclista viajante, há de entender o festivo sentimento que me ocorreu ali (só!) na luminosa aurora daquele dia.
Coisa de poesia.
Enquanto aquela pergunta (íntima) me assediava, eu descia em boa velocidade os mais de seis quilômetros que formam a Serra do Limoeiro, um dos percursos mais deliciosos que já pedalei.
– Mas esse sorridente ciclista que desce a Serra do Limoeiro quase voando, quase cantando, não vinha, há muito, aturdido por golpes, prisões, crimes, rompimentos, desastres, incêndios, intempéries e outros dissabores nacionais? Tanto que num certo momento anunciou (pra si mesmo) que tinha desistido desta viagem?
Sim, esse anúncio (pessoal, doloroso) se deu no dia 5 de novembro de 2015, naquela amarga quinta-feira em que o já decrépito Watu recebeu um violento tiro de misericórdia desferido impiedosamente pela Samarco (Vale, BHP Billiton).
Nos dias subsequentes àquele crime de lesa-natureza, quando todos nós nos debruçávamos genuflexos, consternados, compungidos à margem do Doce, chorando sobre a lama que maculou seu leito, decidi, sim, que não faria mais esta viagem que vinha, de antanho, planejando.
Não tinha mais sentido.
Joguei, então, a toalha, é verdade.
Mas quase um ano depois estou eu aqui cruzando essas serras para alcançar o Doce (moribundo) exatamente onde ele recebe o também maltratado Guandu, seu primeiro afluente em território capixaba.
Tinha saído de Vila Velha no dia anterior, terça-feira, 25 de outubro, com destino à Serra da Mantiqueira, na região Central das Minas Gerais.
Estava indo contemplar nosso rio (miúdo e puro) brotando inocente lá nas alterosas.
Só isso.
Depois desceria pedalando por toda a sua extensão, até a foz ali na vila de Regência Augusta, no litoral de Linhares.
No dia anterior, o primeiro daquela tão esperada (e protelada) viagem, comecei a subir a serrania capixaba passando por Cariacica e Santa Leopoldina e chegando, no fim da tarde, a Santa Teresa, onde estacionei a magrela e pernoitei.
E é de Santa Teresa que eu tinha zarpado naquela quarta-feira bem cedinho, para o meu segundo dia na estrada.
Só que ainda – como no período que precedeu a viagem – eu vinha taciturno, sombrio, preocupado.
É que, mesmo retomando o desejo de realizar meu intento, o sentimento que me conduzia e a realidade que me cercava, eram, agora, outros.
Entre meados de 2014, quando comecei a planejar a viagem, e aquele finalzinho de 2016, muita água (suja, tóxica) tinha rolado por nossas bacias hidrográficas.
Bem como pelas bacias políticas, jurídicas, morais e institucionais brasileiras: Pindorama já começava a ser empurrada para a bacia das almas, pra onde seríamos desgraçadamente lançados algum tempo depois, no pleito eleitoral de 2018.
A Pátria (cívico sentimento de comunidade nacional, que comungo com paixão) encontrava-se vilipendiada, malferida e envergonhada; a Carta Constitucional (nascida de um amplo debate civil que se desenvolveu imediatamente depois de vencido o embate contra a ditadura empresarial-militar) vinha sendo tripudiada e rasgada; a Democracia (tão duramente conquistada) fora trucidada há pouco, num golpe híbrido desavergonhado; a grande imprensa se agrupou numa só voz pra infundir um sentimento de descrença e ódio na alma brasileira; a mentira, repetida diuturnamente nas páginas dos jornais e nas telas das TVs (antes mesmo de – bestializada – dominar as redes virtuais), ocupou o espaço da verdade; o famigerado mercado estabeleceu as suas regras gananciosas; os direitos civis foram esquecidos; rios começavam a ser assassinados, enquanto vozes bravias iam sendo ceifadas ou apagadas; e a idiotice (alimento que dá tônus às obtusas e raivosas matilhas que sustentam a Casa Grande) começava a se espalhar pelas cidades (violentas) e pelos campos (devastados).
Enfim, era um momento de dor, posto que uma quadra de pragas e tragédias nacionais se fazia anunciar já naquele final de 2016.
Mesmo assim resolvi retomar meu projeto.
E vinha ali pedalando pela manhã do segundo dia da viagem ainda meditativo, tristonho e angustiado.
Mas quando (de súbito) a estrada se lançou montanha abaixo no Limoeiro de Santo Antônio, fui acometido (confesso) por um incontido regozijo.
Cercado, dos dois lados, por uma ampla paisagem pintada de primavera e confabulando sussurros de prazer com a branda brisa que por ali passeava com ares de aragem, eu estava começando, enfim, a minha (quase sucumbida) viagem.
Com um alforje de sonhos na bagagem.