O fado da Ferreirinha

Nas primeiras horas da segunda-feira, 9 de junho de 2014, eu saía de Ponto Belo, carregando no cenho o desenho risonho de quem começa o dia (viva!) sabendo exatamente pra onde vai.

Impulsionado por esse aditivo (insustentável) da leveza, passei por Santa Luzia do Norte e cheguei a Cotaxé ainda bem cedo.

Por estar adentrando uma região de evidente risco emocional – o Território da Infância – resolvi estender até a hora do almoço minha permanência em Cotaxé: queria ficar por ali vadiando na contramão do Tempo.

Ao final daquele esforço vão (o Tempo não tem contramão) me dei conta de que já era hora de procurar um bom aperitivo pro almoço histórico que se aproximava.

Assim eu cumpriria também a agradável obrigação que me imponho em cada lugar que chego: degustar, com atenção de pesquisador, um ou dois dos destilados de cana-de-açúcar produzidos por ali.

Enfim (sem chalaça?) gosto, sim, de uma boa cachaça.

E posso assegurar que o nosso estado produz excelentes exemplares dessa bebida nacional.

Pena que ainda distribuímos nossa esmerada produção de forma muito silenciosa, quase clandestina: muitas das boas cachaças que tenho encontrado na minha esforçada pesquisa etílico-ciclística, não têm uma identificação legal, um rótulo.

São, geralmente, obras-primas de pequenos e anônimos produtores que se desdobram na impositiva sazonalidade das suas atividades agrícolas.

É exatamente aí que tenho encontrado cachaças puras, honestas e inspiradoras.

A Ferreirinha – de que vou falar – não era uma dessas.

Embora dispusesse de todas as virtudes que acabo de enunciar, ela se distinguia das outras por não apresentar qualquer traço de modéstia.

Nem pleitear o anonimato.

Muito pelo contrário: seu comportamento em público era o de uma aguardente fina, pretensiosa e com certa dose de vaidade: cheguei a vê-la – e a saboreá-la! – numa dessas requintadas – e caras – cachaçarias de Vitória, trajando bem cuidada embalagem e estampando um rótulo que, pelo visto, terá saído da tesoura de algum estilista gráfico muito cuidadoso: coisa tipo exportação.

Só que a Ferreirinha, não me pergunte o porquê, estava fadada a escafeder-se precocemente, sumir.

Sim, ela parou de ser produzida e deixou alguns amantes – é o meu caso – inconsoláveis.

Mas é importante considerar que esse meu apreço especial por aquela purinha prende-se também ao fato de sermos, eu e ela, naturais de Ecoporanga.

Isso sempre despertou em mim um embriagado orgulho que nunca deixei de anunciar, eufórico, em mesas e balcões.

Mas nenhuma linha deste discurso que estou fazendo aqui me ocorrera enquanto eu passeava saudoso por Cotaxé, naquela manhã de segunda-feira.

Nem mesmo no momento em que eu estava entrando numa venda da vila pra beber um aperitivo, tinha pensado nela.

Só que, enquanto aguardava ser atendido, vi, com alegre surpresa, nas parcas prateleiras do estabelecimento uma garrafa de Ferreirinha cintilando num dos pontos mais altos da vitrine à minha frente.

Não vou esconder de você que fiquei com água na boca.

Mas me mantive discreto, esperando o atendimento.

Quando chegou a minha vez pedi ao dono da venda – apontando para aquele ponto da prateleira – uma dose de Ferreirinha.

Ele, atencioso, lançou o olhar sorridente para onde eu indicava e disse convicto (e sonoro!):

– Não.

– Ah, então é só a garrafa que está ali, sem nada dentro, né?

Disse meio escabreado, tentando entender sua decidida negação.

Ele:

– Não. É uma Ferreirinha, sim. Original, inteira e absolutamente virgem. Mas eu tenho só aquela garrafa ali e guardo-a como lembrança, relíquia, troféu: não abro por nada.

O cara, percebi de imediato, tem o comportamento obstinado dos colecionadores, coisa que, nem com grande esforço, consigo entender.

Deduzi que nem mesmo se eu oferecesse pra ele – o que não faria, claro – a minha magrela (que a tudo observava ali da calçada) ele abriria aquela garrafa da saudosa Ferreirinha que apareceu sedutora, em plena segunda-feira, na prateleira de uma vendinha naquela vila do velho Contestado.

Preferi não contestar:

bebi uma anônima (da boa!) e fui, flanando, almoçar.

(Continua no próximo domingo)

Veja textos anteriores:

Crônica publicada originalmente no site Estação Capixaba. Fotos: Gilson Soares.

Gilson Soares é poeta.
A Editora Cândida acaba de lançar mais um livro deste escritor: Cem palavras. Uma seleção dos textos publicados em sua coluna semanal nas páginas virtuais desta Editora. O livro pode ser adquirido na loja virtual: https://loja.editoracandida.com.br/cem-palavras