
Os pequenos poemas pedestres, que depois viriam compor o repertório de um livro e adquirir formato editorial, eram formulações transitórias que escapavam dos pensamentos e sentimentos (talvez, sonhos) em torno de uma fuga ciclística almejada desde antanho.
Todos aqueles minúsculos poemas que estão ali existiram inteiros (título, palavra por palavra, disposição gráfica) no espaço diáfano das elucubrações, antes de chegarem ao papel.
Além da magrela que já andava me aliciando há algum tempo com (sedutoras) propostas ciganas, recebi também, no decorrer da lenta gestação daquele conjunto de diminutos artefatos literários, sugestivas proposições de Jorge Luis Borges e de Friedrich Nietzsche, conforme confesso nas epígrafes (siamesas) do tal livreto.
Como não sou escritor de ficção, era preciso buscar estrada pra dar substância àqueles grupelhos de palavras paginados.
O livro não teria sentido se não rolasse a viagem.
Por isso ele só foi lançado (no tradicional formato impresso) quando a magrela (impositiva, que só ela!) posicionou o guidão em direção à Serra da Canastra.
Presumi que adquirira, ao sair pra percorrer toda a extensão do rio São Francisco, o direito de lançar aquele libelo à liberdade.
E incluí-lo na bagagem.
Assim se fez.
Conto isso aqui neste episódio das Crônicas ciclísticas pra oferecer sentido ao título que encabeça o texto: Igarité.
Você sabe onde é?
Pois é, eu também, até então, nem sabia que existia.
Foi quando ainda transitava pelas margens (virtuais) do São Francisco tentando elaborar um arremedo de planejamento pra viagem que vinha projetando, que vi num ponto ínfimo do mapa (digital) que me atendia, bem no centro do extenso sertão da Bahia, a palavra Igarité indicando alguma povoação.
Se eu disser que a viagem começou ali estarei mentindo.
Claro que tanto antes, quanto, também, depois muita coisa me ocorreu até que a viagem começasse.
Mas Igarité (esse atraente topônimo) se incorporou com imediata alegria ao meu inexato roteiro de aventuras.
Rabiscando meus destinos franciscanos, pontuava, de antemão, várias referências históricas, geográficas, paisagísticas, além das tantas curiosidades antropológicas, sociais que despertavam meu interesse naquele pedaço (profundo) de Brasil que pretendia transpor pedalando.
Era uma seleção relativamente pequena de anotações na rica cartografia do meu (marginal) trajeto pelo Velho Chico.
Igarité passou a fazer parte deste (seleto) grupo imediatamente.
Sem currículo, sem histórico, sem qualquer conteúdo (urbano, topográfico ou cultural) que desse a esse distrito de Barra, BA, tal posição de destaque no meu extenso roteiro ciclístico.
Foi só mesmo por causa do seu nome (inédito e atraente, pra mim) que eu comecei a pensar, muito antes de partir, que um dia (bem no meio da minha viagem) eu chegaria a Igarité.
Assim, quando no dia 27 de outubro de 2017 saíamos (eu e a magrela) de nossa casa em Vila Velha pra percorrer (na íntegra) o maior rio inteiramente brasileiro, cruzando mais cinco estados além do Espírito Santo, aquela diminuta vila, ribeirinha do grande Chico em pleno sertão baiano, já aparecia cintilando no radar.
O que depois (muito depois) se deu lá, só eu sei e (agora) não vou contar.
Esperemos.
Ainda há muito que pedalar.

Gilson Soares é escritor. Em breve, a editora Cândida publicará “Ela, magrela”, livro que reúne crônicas do autor publicadas no site da editora e que podem ser lidas no link https://editoracandida.com.br/ela-magrela-2/.