(epílogo)
Eu, de hábito, sou pouco afeito a festas populares em torno de efemérides.
Quando elas se dão com suas farturas, suas algazarras e suas movediças aglomerações, eu me posiciono, em geral, distante (… e só).
Isso não significa que eu seja um cara acabrunhado, tristonho.
Não sou:
salvo alguma momentânea adversidade pessoal ou, talvez, uma tormenta pública (social, política) que me angustie, estou sempre mais próximo da alegria – ainda que discreta – do que da tristeza.
Se a esses festejos coletivos eu não compareço é porque sei que o prazer – aquele que me é dado degustar – chega-me pelas mãos do silêncio e da brandura, não da balbúrdia e do foguetório.
Por isso, fico em casa.
Quieto, solitário (… e satisfeito).
Era assim que eu estava na última noite daquele, agora distante, 2014.
Talvez me dedicando, como todo mundo, a lembrar de glórias e mazelas ofertadas pelos 365 dias do calendário civil que – com a habitual desmesura – se encerrava.
Embora possivelmente rebobinando algum balancete íntimo, minha rotina naquele dia era a de uma quarta-feira qualquer, comum.
Em torno da meia-noite ouvi o ribombar esfuziante e esganiçado que o réveillon, como sempre, trazia: com seu roteiro vezeiro e sua encarquilhada trilha.
O pior é que essa famigerada farfalha – deduzi, depois – contribuiu decisivamente para que a magrela (minha companheira discreta e solidária de tropeços e triunfos) fosse conduzida – a contragosto, acredito – para além dos muros e das grades que circundam minha casa.
É um percurso curto, porém com um grau de dificuldade extremo.
Não pra ela, magrela (que por certo esperneava), mas pra quem, com esforço, a larapiava.
No entanto tal barreira doméstica, mesmo que difícil, não era intransponível, foi o que constatei na manhã seguinte quando me dei conta da ausência da (memorável) companheira de inopinadas jornadas:
a magrela (sob a eloquência tresloucada da virada) fora surrupiada.
Sim, minha consorte de incontáveis aventuras, escafedera-se definitivamente.
Nos primeiros dias do noviço 2015 ainda fiquei de olho, alimentando a ilusória expectativa de reencontrar, de repente, minha parceira, perdida por aí.
Empreendi, até, algumas buscas conduzidas por meu bisonho – ainda que esforçado – raciocínio investigativo.
Cheguei a nada.
A danada tinha mesmo debandado (acredito que contrariada) no alvoroço da virada.
Possivelmente na mesma hora em que o decrépito 2014 (com todas as suas glórias e mazelas) desaparecia, ela, magrela, também se ia.
Ao fim só restou de nós (e daquele romance itinerante por estradas capixabas) essa crônica ciclística precária.
Com (descabida) pretensão literária.
Veja textos anteriores:
- Introito
- Carregando Minério na bagagem
- Regentes com a mão na massa
- Atravessando o Vale do Suruaca
- Hieróglifos em petrobrês
- Rumo às dunas de Itaúnas
- Um arco em linha reta?!
- Vinha, Elisa, recorde
- Canarinhos
- Três Corações (ou Taquarinha?)
- Dormi mal na capital
- Encontro Marcado
- De menesguei
- Torre a ré
- Cidade vazia
- A deusa de Ponto Belo
- O dedinho da deusa
- O fado da Ferreirinha
- Ecoporanga
- O caso do ocaso
- Tó
- Homem do campo
- Ariranha
- As cristas dos Aimorés
- As cachoeiras pluviais
- A dor de São Domingos
- Psicologia canina
- BR-101
Crônica publicada originalmente no site Estação Capixaba. Foto: Gilson Soares.
Gilson Soares é poeta.
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