Dos prêmios de Adélia

Silvana Pinheiro

Adélia Prado, poetisa mineira de Divinópolis, com seus 88 anos completos, recebeu em junho recente duas importantes premiações pelo conjunto de sua obra: o prêmio Camões, o mais importante da língua portuguesa, e o Machado de Assis, oferecido pela Academia Brasileira de Letras. E ao que tudo indica, continua produzindo e trará a público um novo livro, ainda em 2024, Jardim das oliveiras, pela Record.

Durante quatro décadas, Adélia publicou 08 livros de poemas, 07 livros em prosa e 02 de literatura infanto-juvenil, além de várias seleções de seus textos. Iniciou sua trajetória-solo em 1976, com a publicação de Bagagem, e foi reconhecida em sua estreia por importantes nomes do campo literário, como Carlos Drummond, seu conterrâneo, que destacou o caráter existencial de seu texto poético. Em 1978, foi premiada com o Jabuti, pelo livro O coração disparado.

Os livros de poemas dos anos iniciais se relacionam com sua inserção pública na literatura brasileira e com o impacto de seus versos no momento histórico de eclosão das muitas vertentes poéticas daquele período, bem como dos últimos anos da ditadura militar e da subsequente fase de abertura política no Brasil. De certa forma, sua obra se comunica com esses fatos históricos e literários um pouco à distância, sem, no entanto, deixar de estabelecer um diálogo promissor com seu tempo.

Focalizo neste artigo algumas breves considerações sobre seu fazer poético. Percebo que a poesia de Adélia se apoia, desde o início, em temáticas do cotidiano, embalada por discursos religiosos de matriz cristã, além de estabelecer um diálogo profícuo com grandes nomes do Modernismo em língua portuguesa. Sua poesia se inscreve nos amplos solos literários brasileiros em interlocução com diferentes manifestações poéticas desse campo.

O diálogo intertextual presente em sua primeira publicação, Bagagem, por exemplo, evidencia uma preocupação por parte da autora em apontar os nomes do cânone modernista que se farão presentes na obra, ora mais explícita, ora mais implicitamente, e que de alguma forma chancelam e autorizam sua inserção no campo naquele momento. Observando aspectos intertextuais desse livro, observo que o modo poético adeliano dialoga com nomes da literatura em Língua Portuguesa, nas principais personalidades de Carlos Drummond de Andrade, Guimarães Rosa e Fernando Pessoa, e esse diálogo acontece textual e intertextualmente.

Carlos Drummond de Andrade foi influência confessa de Adélia Prado

No que diz respeito a influências bastante perceptíveis nos versos de Bagagem, pode-se elencar especialmente a estreita relação de Adélia Prado com Carlos Drummond de Andrade, pela via da admiração e reverência, bem como pela influência explícita. E, por certo, com forte gratidão pelo apoio declarado do também poeta mineiro aos poemas inaugurais da autora, o que contribuiu para a publicação de seu primeiro livro. Por exemplo, o poema “Com licença poética”, de abertura do livro e da seção de “O modo poético”, é antológico. Trata-se de um poema-palimpsesto que dialoga com o “Poema das sete faces”, de Drummond, cujos versos são de abertura do também primeiro livro do literato de Itabira, Alguma poesia (1930). Em “Poema das sete faces”, Drummond traça seu próprio perfil de jovem poeta, enraizado nas marcas da poesia modernista, mostrando uma voz própria que se destacaria em meio à toda a produção poética brasileira do século XX.

Outro aspecto a considerar nas análises de sua obra, desde o primeiro livro, é a presença de figuras representativas de mulheres, seja pelo foco nos temas que lhe são afins, seja pelos elementos ligados à realidade das múltiplas mulheres presentes na enunciação de seus poemas.

Durante minha pesquisa de doutoramento sobre a obra de Adélia, evidenciei os caracteres das mulheres que emergem da produção lírica da autora, que não correspondem a um script previsível, pois há muitas mulheres, com diferentes características, que protagonizam e/ou enunciam os poemas adelianos. Isso destoa da tendência de associar a obra da poetisa a uma concepção unívoca e tradicional de mulher e, em geral, à autora mineira, de uma cidade do interior, Divinópolis, católica  praticante e mãe.

No que se refere à ligação de sua voz poética ao erotismo, outro aspecto bastante discutido em sua fortuna crítica, essa característica vincula seus poemas aos discursos da contemporaneidade, alinhando sua obra às propostas poéticas de mulheres de seu tempo. A via do erotismo é um dos principais pontos de contato de seus versos com a poesia contemporânea escrita por mulheres.

Para compreender um pouco melhor a poética da autora sob esse aspecto em particular, é preciso ter clareza do lugar e do tempo histórico em que são enunciadas as personas que emergem de seus textos no primeiro livro, para evitar análises descontextualizadas, que podem ensejar leituras estigmatizantes e, por vezes, preconceituosas, que ignoram a complexidade dos lugares femininos na contemporaneidade. As mulheres líricas de Adélia se realizam em meio às mudanças velozes de comportamento engendradas pela pós-modernidade. Entretanto, essas personas líricas se mostram transicionais, pois falam de mulheres em processo de deslocamento entre o mundo apenas restrito ao ambiente doméstico e o mundo que extrapola os limites da vida em família.

Foto: Jackson Rommanelli

Essas e outras facetas permanecem em discussão nos estudos sobre sua produção literária, que atravessa quase cinco décadas de grandes mudanças na organização social no mundo todo, e os versos da poetisa abordam os mais profundos temas que perpassam a nossa existencialidade neste nosso tempo conturbado.

Seus textos ainda prometem reverberar por longos anos. Hoje podemos inclusive ver Adélia lendo seus próprios versos em reels nas redes sociais, emocionada e emocionando a todos, das mais diversas realidades, ao ler sua poesia. E anuncia um novo livro, dizendo que deseja continuar a escrevendo. Fazemos votos. A poesia brasileira agradece e se sente premiada.

REFERÊNCIAS:

PINHEIRO, Silvana. A invenção de um modo: movimentos líricos na poesia de Adélia Prado. Tese de Doutorado. Vitória: PPGL/UFES, 2019.

PINHEIRO, Silvana. Sem licença: a poética de Adélia Prado. Belo Horizonte: Caravana, 2022.

TORRES, Bolívar. Adélia toda prosa. O GLOBO: Segundo caderno. Rio de Janeiro. Sábado, 06/07/2024. p.1-2.

Silvana Pinheiro é escritora e Doutora em Letras pela UFES. Sua tese de doutoramento foi sobre a obra  poética de Adélia Prado. Publicou pela editora Cândida o livro Próximo Passo, que pode ser adquirido no link https://loja.editoracandida.com.br/proximo-passo