Da psicologia canina
Quantas vezes já falei pra você da minha parca – ou porca? – erudição?
Acho que nem preciso ficar falando: é notória minha vasta bagagem de ignorâncias.
Mas há assuntos em que exibo um desconhecimento ainda mais destacado.
Um desses assuntos é a psicologia canina.
Pra você ter uma idéia, eu nem sabia que essa ciência existia.
Mas existe, sim, e tem lá os seus cânones, seu status acadêmico.
Bom, qualquer ciclista viajante sabe que os cachorros, principalmente os que residem em sítios e fazendas de beira de estrada, têm uma indisposição declarada com quem transita de bicicleta.
Por isso, alimento, desde os meus primeiros pedais rurais, interesse em entender as manifestações (às vezes agressivas) de um ou outro au-au.
Mas confesso que nem me lembrava disso enquanto ia pedalando naquela manhã de sexta-feira, 13 de junho de 2014, depois de ter passado pela EEEFM São Domingos e entregado pra sua biblioteca os últimos exemplares de Minério que agregara à bagagem para aquela viagem.
Agora, o que eu transportava no bagageiro da magrela era a alegre – e leve – sensação do cumprimento, na íntegra, do que me propusera a fazer nesse Giro:
do ponto de vista cartográfico, o rabisco que escrevi com o rastro da magrela por essas estradas setentrionais capixabas, acabou ficando bem parecido com o desenho enviesado do Torreão (como eu queria);
ao mesmo tempo, prestei minha contribuição ao mercado editorial entregando Minério para todas as bibliotecas públicas municipais e escolares que estiveram no meu roteiro até ali.
E como em todas as viagens, naquele Giro eu tinha também sido perseguido algumas vezes por cachorros e cadelas.
Assim, vez ou outra vinha pensando em me dedicar, quando pudesse, à busca de um maior conhecimento sobre o comportamento dos indivíduos dessa categoria doméstica de canídeos.
Por que será, por exemplo, que os cães de todas as raças, culturas, procedências e endereços têm tamanha aversão aos ciclistas e aos seus inofensivos veículos de locomoção?
Quem sabe, estudando, não irei encontrar resposta para essa e outras perguntas que carrego comigo?
Mas, em verdade, nem pensava nisso enquanto observava à minha frente uma procissão desordenada de cachorros vagabundos.
Afinal a matilha de vira-latas que transitava ali – talvez todos os cachorros vadios de São Domingos do Norte – estava mesmo é festejando o cio de uma cadela muito cobiçada por aquela comunidade masculina.
Talvez até fosse o dela – pelo número de pretendentes ali perfilados – o cio mais esperado da região.
Não sei.
Por isso não pensei – não pensava… – que qualquer outra atração alteraria o interesse, decididamente sexual, daquela cachorrada.
Mas de repente – quem poderá explicar o comportamento coletivo desses bichos? – eles, unânimes, desviaram sua atenção e avançaram, vorazes, pra cima de mim.
Chego a pensar hoje que a iniciativa partiu da própria cadela que, incomodada por aquele assédio matinal de todos os vira-latas dominguenses e percebendo a minha indiferente (e indefesa) passagem pelo outro lado da rua, não pensou duas vezes: deu a ordem de ataque.
Que foi fulminante.
Tanto que, francamente, nem sei precisar qual foi o indivíduo daquele coletivo – sem pedigree e sem teto – que cravou os seus afiados caninos na parte inferior da minha panturrilha direita, que sangrou imediatamente.
Não consegui identificar ali, naquela turba conturbada (e feroz), quem ladrava e quem mordia. Considerando o que diz o ditado: cão que ladra, não morde.
Pelo menos enquanto ladra, como ressalvou – num outro tempo de irracional terror – o (esse, sim) erudito Millôr.
Crônica publicada originalmente no site Estação Capixaba. Foto: Gilson Soares.
Gilson Soares é poeta.
A Editora Cândida acaba de lançar mais um livro deste escritor: Cem palavras. Uma seleção dos textos publicados em sua coluna semanal nas páginas virtuais desta Editora. O liv