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BR-101

Naquele sábado, 14 de junho de 2014, acabei saindo de João Neiva mais tarde do que tinha planejado.

Era o último dia da viagem e pela primeira vez no Giro, eu e ela, magrela, íamos transitar longamente pela movimentada (e turbulenta) BR 101.

Na saída de João Neiva tem um acentuado aclive.

Naquela subida, em razão da oferta de mais uma pista para os carros, não havia acostamento

Ao ciclista que, como eu, transitasse no sentido João Neiva/Ibiraçu restavam duas opções.

Ambas arriscadas:

ou permanecia à direita e subia pedalando apertado entre os carros pesados (e velozes) e o meio-fio; ou atravessava a pista pra pegar o acostamento do outro lado.

Optei por atravessar a BR.

Enquanto esperava o momento oportuno, observei que lá no topo do morro, do mesmo lado que eu, tinha um ciclista (bem paramentado) parado: em atitude de contemplação.

O cara estanque, meio cabisbaixo, estava lá olhando pro nada, acho.

A certa altura vi que ele tinha abandonado sua postura contemplativa e, também, cruzava a pista.

Meio que espontaneamente, ao nos cumprimentarmos paramos e começamos a conversar.

Amarildo, comerciante em João Neiva, estava encerrando seu treino ciclístico matinal.

Instado por sua curiosidade, contei um pouco da minha viagem pelo Arco Norte que se encerrava naquele dia.

Ele, então, me falou do grupo de ciclistas que eles tinham e dos amistosos pedais coletivos que realizavam.

Há pouco tempo um dos integrantes do clube ciclístico joão-neivense tinha sido atropelado exatamente ali, naquele trecho da turbulenta – e truculenta – BR-101.

Amarildo tinha perdido um amigo.

Um sentimento de companheirismo e solidariedade nos aproximou fortemente e acabamos ficando naquela conversa improvisada por mais tempo do que prevíamos.

Até que nos fomos, porque tínhamos que ir, cada um pro seu lado.

Da minha parte, acabou ficando ali um pouco da alegria que reservara para a manhã daquele dia conclusivo.

A partir de então fui me enveredando por pensamentos – e sentimentos – nascidos do casual encontro, ali, naquele ponto.

Observei que estávamos numa linha demarcatória, numa fronteira entre dois territórios comportamentais, ideológicos.

A BR 101, via por onde transita boa parte do que o Capital produz e movimenta pelos costados de Pindorama, é uma (in)fluente peça na engrenagem que impulsiona a máquina da economia nacional.

Essa estrada, traçada ao longo de todo o litoral brasileiro, é sustentada pela ideologia do automóvel, do transporte rodoviário de riquezas, pela lei do extrativismo acelerado e voraz.

Nenhum trecho da sua extensão continental oferece prioridade para o pedestre ou para o ciclista.

Por esse palco – de guerra? – desfilam vociferando os mais robustos e aguerridos produtos da engenharia automobilística.

Eles estão ali empenhados em transportar, ininterruptamente, estoques de moeda corrente nos seus mais variados formatos, tamanhos, pesos e medidas.

Essa rodovia está a serviço do pensamento econômico e social dominante. Ao adotar a bicicleta como instrumento de locomoção estamos tomando uma atitude política.

Talvez, revolucionária: pedalamos na contramão da ideologia do automóvel, da máquina, do progresso agressivo, do crescimento destrutivo.

Não ostentamos armas, não temos escudos: não portamos artifícios de defesa, não buscamos o confronto.

Optamos, geralmente, por pedalar estradas moderadas, trilhas tranquilas.

Mas, vez ou outra, temos que transpor cenários de guerra.

Como eu e Amarildo, agora.

Como seu amigo, um dia.

Embora ocupado por esses pensamentos e sentimentos, consegui ser (quase) pontual com o cronograma daquele sábado cabal:

quando a noite começava a exibir migalhas de sombras nos costados do Moxuara, a oeste, cruzamos as Cinco Pontes, sobre o Santa Maria (e o mar) e voltamos a transitar pelas extensas planícies vespertinas de Vila Velha.

Em casa.

Eu e ela, magrela.

Crônica publicada originalmente no site Estação Capixaba. Foto: Gilson Soares.

Gilson Soares é poeta.
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