As cachoeiras pluviais
Quando a barra do dia despontou sobre Barra de São Francisco na manhã daquela quinta-feira, trouxe estampada na sua lapela uma evidente – e urgente – promessa de toró.
Eu – bem como a cordata magrela – transitava risonho e despreocupado a caminho da saída da cidade na primeira hora daquela manhã turva.
Mais de um motivo contribuíam para que eu – como se desdenhasse do pé-d’água que o dia anunciava – exibisse, ali, aquele semblante sereno.
O primeiro é que eu acabara de concluir, em Barra de São Francisco, o percurso deste trecho que nomino de Torreão Noroeste do mapa do Espírito Santo.
E isso, pra minha alegria, tinha se realizado com razoável proximidade do que fora previsto no meu esforçado – coitado – planejamento de viagem.
No dia anterior eu tinha chegado a São Chico – depois de romper as últimas fraldas desgrenhadas dos Aimorés – a tempo de deixar exemplares de Minério na Biblioteca Pública Municipal e na biblioteca da EEEFM João XXIII.
Depois dessa tarefa, digamos, protocolar, tive tempo, ainda, de fazer um solitário passeio noturno por esta cidade que esconde, nos recônditos da sua conformação urbana, um remoto – pueril, mesmo – sentimento de admiração que ainda guardo comigo:
quando criança, eu gostava de passar por aqui e apreciar essa bela catedral de São Francisco de Assis, erguida num pequeno outeiro no centro da cidade;
também ali no centro, eu gostava de transitar pela principal praça franciscana que costumava exibir, nos seus canteiros floridos, pequenas árvores com suas copas torneadas, em diferentes formas geométricas, por um jardineiro misterioso – e engenhoso – que eu nunca via em ação aqui, nas minhas fugazes visitas infantis.
Nesse pedestre passeio noturno ao passado, ofertado agora por São Chico, eu brindava, então, o desfecho do meu vitorioso contorno ciclístico do Torreão.
E pra comemorar a conclusão dessa importante etapa do Giro, arrematei aquela caminhada pela cidade na companhia de uma silenciosa (e saborosa) cerveja em um discreto botequim francisquense.
Já o outro motivo para o meu cenho sorridente nesta manhã chuvosa é que eu gosto mesmo de chuva.
E como eu tinha, por precaução, agasalhado com impermeável segurança, na garupa da magrela, a rotunda bagagem – roupas, livros e utensílios de viagem – estava, agora, livre para aquele raro banho itinerante que se me anunciava matinal e gracioso.
Por tudo isso eu, franciscano mundano, ia, ali, sereno – diria, até, lírico! – deixando pra trás São Francisco.
Mas nem me passava pela cabeça que ainda naquela manhã encontraria uma profusão de cachoeiras altaneiras saltando aos meus olhos, durante todo aquele percurso compartilhado com a irmã chuva.
Essas altas enxurradas que despencavam ziguezagueando dos cocurutos daquelas montanhas de granito, eu as conheço desde antigos temporais.
Eram elas que ilustravam – no anfiteatro que compõe Ecoporanga – as minhas sonoras e iluminadas tormentas infantis:
entre estrondos e relâmpagos, elas deslizavam sinuosos pelas montanhas de pedra que circundam minha cidade e depois se jogavam por despenhadeiros escuros, feito efêmeras cachoeiras brancas e esguias.
Muito parecidas com estas que, agora, pedalando solitário pela manhã de uma quinta-feira invernosa, eu via.
Que dia!
Crônica publicada originalmente no site Estação Capixaba.
Gilson Soares é poeta.
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