A dor de São Domingos
O banho ambulante matinal não alterou o planejamento que eu tinha feito para aquela quinta-feira, 12 de junho de 2014: um singelo pedal de Barra de São Francisco a São Domingos do Norte, aonde chegaria por volta de meio-dia.
Só isso.
Depois eu ia relaxar e esperar o jogo de abertura da Copa do Mundo de Futebol.
Em meio a esse percurso curto, passei ainda por Águia Branca, cidade cujo topônimo, contaram, foi recortado do Brasão de Armas da Polônia e trazido, com cuidado, por um grupo de migrantes que topou fundar uma comunidade polonesa no nosso estado.
Sob chuva entreguei um ou dois exemplares de Minério à biblioteca da EEEFM Águia Branca e, já saindo da cidade, parei pra degustar uma latinha de cerveja – silenciosa e contemplativa – no festivo bar de um posto de combustível.
Num aparelho de televisão, instalado ali, vi que já se iniciavam as transmissões da cerimônia de abertura da Copa.
Uma galera – a maioria deles, jovens – que encerrara sua jornada de trabalho mais cedo, jogava sinuca, bebia, comia e, principalmente, farreava, ali no barzinho do posto.
Perambulando ao largo da estridente televisão e da festiva bagunça daqueles aguiabranquenses que digladiavam sua loquacidade, fiquei observando um canário intensamente amarelo que circulava entre carros e motos estacionados na chuva.
O canarinho que já foi símbolo de outras seleções brasileiras mais marcantes (e menos mercantes) voava de um pra outro veículo, dialogando, em melodioso trinado, com sua imagem na superfície molhada dos automóveis onde pousava (e posava).
Inquieto, ele se esforçava pra expressar (só pra mim, acho) o deslumbre – e o espanto! – que aquela sucessiva ilusão visual lhe provocava.
Já concluída a cerveja, pedi licença ao canário da terra e à águia polaca – não aos loquazes rapazes – e fui embora.
Queria chegar a São Domingos com folga pra me hospedar, tomar um banho, acomodar a magrela, dar uma voltinha a pé pela cidade e depois assistir, quieto e só, ao primeiro confronto daquele Mundial de Futebol, Brasil x Croácia.
Percebi, ao caminhar pelas poucas ruas de São Domingos, que não se repetia ali a alegre expectativa observada em Águia Branca.
Não encontrei, passeando pela urbe dominicana, nem rapazes loquazes, nem canários canoros.
São Domingos estava turva, vazia, úmida e silenciosa.
Talvez, até, constrangida.
O que teria acontecido entre a minha festiva saída de Águia Branca e aquela chegada chué a São Domingos do Norte?
De volta ao hotel – enquanto me servia uma cerveja e buscava me acomodar – vi que a televisão mostrava imagens e comentários da cerimônia de abertura da Copa.
Só então tomei conhecimento da tragédia nacional que ocorrera.
Durante a partida, vendo a atuação chocha do nosso selecionado, tive a impressão de que pesava sobre todos nós (talvez até sobre aqueles atletas mercantis) um sentimento de vergonha (e dor).
Vergonha porque um grupo de brasileiros esgoelara, ao vivo, para o mundo todo, uma verborragia raivosa e idiota, muito distante das nossas características comportamentais.
O xingamento que aquela minoria esbranquiçada – habitante do hemisfério norte no mapa social brasileiro – esganiçava contra uma mulher valente, eleita pra dirigir e representar o Brasil, não é usual no nosso convívio.
Nós não somos assim.
A maioria da população brasileira – eu, você – não expressaria a infamante frase que aquele grupo vociferava repetidamente para espanto do mundo.
Por isso, assisti envergonhado àquela peleja.
E o que eu senti depois do jogo, andando pela cidade (que continuava cabisbaixa) foi uma sensação de angústia sem pouso, sem abrigo, sem abraço.
Sentia em algum lugar de mim, assim como na cidade estupefata, uma dor sombria e extensa: uma dor imensa.
A dor da Pátria envergonhada.
Crônica publicada originalmente no site Estação Capixaba. Foto: Gilson Soares.
Gilson Soares é poeta.
A Editora Cândida acaba de lançar mais um livro deste escritor: Cem palavras. Uma seleção dos textos publicados em sua coluna semanal nas páginas virtuais desta Editora. O